Opinião

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8 de abril de 2023

ALEXANDRE MARINO

Perdidos na bolha

Quando saí de Passos, aos 17 anos, para morar em Belo Horizonte, assumi um compromisso com meus pais: todos os domingos, em horário marcado, telefonaria para eles. Em meados dos anos 1970, cumprir o trato exigia uma logística complexa. A república em que morava não tinha telefone, e telefones móveis só existiam no seriado Os Jetsons, uma fantasia do que seria o mundo dali a 100 anos.

Quarenta minutos antes do horário combinado, eu saía do Edifício JK, onde morava, caminhava sete quarteirões até o posto telefônico da Telemig, enfrentava uma fila e pedia uma ligação para Passos. Depois de 10 ou 15 minutos, entrava numa cabine, onde aguardava no aparelho até que a telefonista completasse o interurbano.

Quase meio século separa aqueles tempos destes de agora, quando se fala, se envia uma mensagem ou até mesmo um vídeo, instantaneamente, para qualquer lugar do planeta. As redes sociais, que começaram nos computadores e encontraram ambiente propício nos telefones celulares, mudaram as relações humanas.

Os celulares, que concentram funções diversas como câmera fotográfica, operações bancárias, transmissão de dados, porte de todos os tipos de documentos, audição de música, cinema, jogos eletrônicos e até telefone, pode ser visto nas mãos de pessoas de todas as idades e classe sociais, incluindo bebês que ainda nem dominam a fala. A concentração de tantas funções faz desse aparelho o portal de uma realidade paralela.

Nas redes sociais, cada grupo vive numa bolha, isolada e maniqueísta, opondo o “eu”, bom, aos “outros”, maus. No Brasil, onde o sistema educacional é deficiente, o estrago é grande. Campo fértil para a mentira e a distorção da realidade, as redes já elegeram um presidente de extrema-direita, que adotou o discurso de ódio como política de governo, debochou dos mortos da covid, elogiou a ditadura e seus torturadores e espalhou armas para que os brasileiros se matem uns aos outros (e hoje anda de carro blindado).

Tenho a pretensão de relacionar a essa transformação dois fatos trágicos, ocorridos em 27 de março e na última quarta-feira, 5 de abril. Todos que leem este texto sabem do que estou falando: o assassinato de uma professora por um estudante de 13 anos, numa escola de ensino médio de São Paulo, e o assassinato de quatro crianças de uma creche de Blumenau (SC) por um indivíduo de 25 anos.

As redes sociais são culpadas por esses crimes? Elas agregam grupos que estimulam jovens a cometer esses atos monstruosos, e uma vez cometidos aplaudem e promovem os criminosos, que se sentem premiados por se livrar de um incômodo anonimato. O ciclo leva a novos crimes.

O vício do celular, como as drogas, interfere no humor, no ritmo do sono e do apetite. Na escola, alunos mergulham nos celulares e não ouvem os professores. Não se concentram em leituras ou filmes. Os videogames ensinam que viver é vencer sempre, e para vencer é preciso matar os adversários que cruzam à frente. Os “influencers”, celebridades que se tornam milionárias nas redes sociais, estabelecem suas verdades inquestionáveis aos seguidores, anônimos e frustrados.

Nesse mundo irreal, onde o único valor é o dinheiro e as grandes fortunas são construídas sobre futilidades, as adversidades do mundo real, reduto de inimigos, se tornam invencíveis. Nasce o discurso de ódio, e perde-se a noção dos valores que tornam o convívio social saudável e prazeroso: ética, solidariedade, amizade, companheirismo, civilidade, cidadania, gentileza, empatia.

Desaparece o sentido de espaço público e espaço privado. O jovem frustrado, sem força para enfrentar as dificuldades que o mundo naturalmente oferece, declara guerra a tudo e a todos, e é acolhido por comunidades de jovens como ele, que o incentivam a ganhar notoriedade praticando crimes monstruosos. Pode parecer ficção. Mas é realidade. E ainda nem falamos das ameaças da inteligência artificial…

Eu, como todas as pessoas, uso telefone celular com frequência. É importante para meu trabalho, para minha comunicação com a família e com os amigos, para minha informação e estudos. Mas não abro mão de longas conversas, não troco as paisagens e o mundo à minha volta pela tela do celular.

Uso as redes para divulgar literatura e ideias que possam tornar o mundo melhor, e eventualmente fazer um gesto que torne alguém feliz. A felicidade de alguém, mesmo momentânea, se reverte em mais felicidade. As redes ainda não destruíram a humanidade. Há tempo para contê-las.

ALEXANDRE MARINO, escritor e jornalista em Brasília/DF, escreve quinzenalmente às sextas nesta coluna