Opinião

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30 de junho de 2023

ALEXANDRE MARINO

Abra a porta, Hal!

Nas noites de lua cheia penso em nossos ancestrais que ainda viviam em cavernas, mirando aquela esfera gigantesca no céu e, quem sabe, tentando compreendê-la. O espaço sideral, inatingível aos mortais comuns, sempre foi fonte de atração para a humanidade, e com certeza foi também para os hominídeos que viveram há 4 milhões de anos. É nessa época que se passam as cenas iniciais do filme “2001 – Uma odisseia no espaço”, quando nossos ancestrais estavam mais preocupados em sobreviver que em contemplar as belezas do céu e da terra.

O filme, lançado em 1968, é uma criação conjunta de seu diretor, o cineasta Stanley Kubrick, e do escritor britânico Arthur Clark, autor de dois contos usados como ponto de partida para o roteiro. “2001” é uma preciosa metáfora sobre a evolução humana, nosso destino e nosso futuro. O filme é de uma atualidade impressionante, e à medida que o tempo passa – lá se vão 55 anos desde o seu lançamento – ele nos fala mais de perto. A qualidade e o realismo das imagens, a trilha sonora e a profundidade e atemporalidade dos temas que aborda fazem de “2001” um dos grandes momentos do cinema.

Nas primeiras cenas, um hominídeo descobre que um osso pode ser usado como ferramenta e como arma, multiplicando sua força. A descoberta serve como defesa e aumenta o poder do bando, que consegue expulsar um grupo rival de uma estratégica fonte de água. O uso das ferramentas foi um dos primeiros passos da evolução humana, representada no filme por um monólito misterioso que aparece em quatro momentos: no deserto africano, diante dos hominídeos; na lua, enterrado próximo a uma estação; na órbita de Júpiter, e ao lado da cama em que o astronauta David Bowman vive, já bem idoso, seus últimos momentos, numa das últimas cenas do filme.

“2001 – Uma odisseia no espaço” é uma viagem ao longo de 4 milhões de anos, desde a origem da humanidade até um futuro que ainda não chegou, porque embora Kubrick tenha imaginado as últimas cenas se passando em 2001, ainda não existem naves espaciais capazes de levar astronautas em missão a Júpiter, com a desenvoltura das viagens vividas no filme. No entanto, o filme trata de um tema assustadoramente presente hoje: a inteligência artificial. Se na época do lançamento era assunto limitado a debates científicos, agora popularizou-se nos meios de comunicação e nas redes sociais.

Não é à toa que a frase “Abra a porta, Hal” se tornou a essência do filme. É dita pelo astronauta David Bowman ao computador que comanda as operações da nave espacial. Mas Hal não obedece, e se Bowman consegue retornar para o interior da nave e desativar o computador rebelado, não evita a morte de quatro colegas pela ação da máquina.

Agora, quando estamos 22 anos à frente da data simbólica que dá título ao filme, o jornal popular de maior circulação na Alemanha, o “Bild”, anuncia a demissão de dezenas de jornalistas, fechamento de sucursais e a substituição dos textos de seus redatores por textos produzidos por inteligência artificial.

Entre os hominídeos que lutam para sobreviver e a nave espacial que chega a Júpiter houve uma ruptura na trajetória humana: nossa completa desconexão da natureza, tanto em seu conceito básico, a fonte da vida, como em sentido mais amplo, a natureza humana, onde reside nossa capacidade de discernir, deduzir, pensar e refletir.

Os primitivos hominídeos eram seres naturais e estavam submetidos às regras da natureza, até que começaram a encontrar formas de quebrá-las, o que, afinal, caracteriza a evolução e o surgimento da civilização. A partir daí, o desenvolvimento da tecnologia nos conduz a um impasse, pois o fim dos limites pode ser também o fim da civilização… Delegar a uma inteligência artificial a missão de resolvê-lo é jogar nosso futuro numa escuridão misteriosa – o que pensa o feto que encara a Terra na cena final de “2001”?

Dois fatos recentes de repercussão mundial ilustram essa desconexão, em sentidos opostos: a sobrevivência de quatro crianças, de 13, nove, quatro e um ano, durante 40 dias na selva da Colômbia, depois da queda de um avião, e a implosão de um submersível com cinco ocupantes, que pretendiam mergulhar 4 mil metros no oceano para ver os restos do Titanic.

As crianças pertenciam a uma etnia indígena e tinham familiaridade com a selva, e assim as três mais velhas souberam encontrar alimentos, se proteger de animais e se abrigar, e ainda cuidar da mais nova, até que foram encontradas. Já os milionários que se dispuseram a pagar altíssimo preço pela aventura a bordo de uma embarcação quase rudimentar se esqueceram de algumas leis básicas da física, algo que certamente haviam tido a oportunidade de estudar na escola.

Respeitar a natureza foi certamente a primeira lição que os pequenos indígenas aprenderam na vida. Já os passageiros do submersível supunham ter a natureza sob seu domínio, e trataram o oceano com desprezo. Algumas leis da natureza não podem ser quebradas.

ALEXANDRE MARINO, escritor e jornalista em Brasília/DF, escreve quinzenalmente às sextas nesta coluna