Opinião

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9 de junho de 2023

Alberto Calixto Mattar Filho

“Diário do farol”, de João Ubaldo Ribeiro

Enquanto os anos transcorrem, sinto que meus vínculos com a leitura vão se fortalecendo. A companhia de um livro em meio à profusão de notícias, controvérsias e factoides que se esvaem ao sabor dos ventos tem sido um alívio para mim. A literatura escancara a complexidade humana e possui uma condição essencial: ser eterna diante de cenários sempre condicionados por interesses passageiros.

Nas páginas de grandes obras ocorre o que temos de melhor, de pior, de dúbio. No corpo de textos célebres, temos todos os sentimentos e cenários que envolvem nossos atos, desejos, angústias, tentações. Na verdade, somos prazer e dor, amor e ódio, fé e descrença, generosidade e mesquinhez, entusiasmo e tédio.

Cabe-nos construir caminhos, solidificar condutas, princípios. Vivemos aos fluxos de uma infinidade de situações paradoxais, conflitantes.
Dos livros que li há anos ou décadas, muitos demandariam releituras. Venho insistindo na importância das releituras. Se o fiz com alguns, outros também me atraem. Opiniões que ostentei no passado podem adquirir cores diferentes com o decorrer do tempo.

Penso, no momento, em “Diário do farol”, de João Ubaldo Ribeiro, este reconhecido escritor brasileiro, que nos deixou em 2014. Lembro-me da ótima prosa de João Ubaldo em suas entrevistas. Inteligência e imaginação ímpares. Dono de vasta cultura, obteve também formação em direito, ciências políticas e jornalismo.

Li esse romance em abril de 2004 e o admirei, do início ao fim, justo por uma característica predominante, a franqueza do personagem que o protagoniza. Narrado em primeira pessoa por ele nas 302 páginas, acabamos atordoados com os fatos terríveis de sua vida. É sempre instigante um texto em que alguém diz, sem receios, o que pensa de si e dos outros, algo tão raro e inviável nas relações do dia a dia.

A propósito, não nos esqueçamos de que a sinceridade de certos personagens é um dos trunfos da literatura. Em “Diário do farol, não aparece a franqueza sutil e irônica de um Brás Cubas, de Machado de Assis, mas a pulsão das confissões bárbaras, frias e até agressivas de um protagonista que quer simplesmente dizê-las com todas as letras possíveis.

Seu nome não é mencionado. Ele almeja apenas um relato de sua existência com as tintas da verdade absoluta, num interregno que compreende os períodos da infância à velhice. Quando idoso, passa a viver isolado num farol em uma ilha marítima e narra tudo de importante que lhe ocorrera. Motivo do título.

A sorte de absurdos tem origem em sua problemática relação com o pai, um autêntico tirano que lhe aplicava torturas e humilhações de toda ordem durante a convivência que mantiveram, inclusive a de ter sido obrigado a ingressar em um seminário para se tornar padre.

Os ressentimentos em relação ao pai tirano vão, portanto, lhe corroendo as vísceras, mas a submissão era inevitável. Em razão disso, acaba possuído por um terrível desejo de vingança. Sinais de psicopatia.

A história então avança nos episódios em que tal protagonista só enxerga o mal, o que o limita tão somente a agir com o objetivo de praticá-lo contra o pai e quaisquer pessoas para dar vazão a suas imensas frustrações existenciais. Sob um bombástico texto confessional, até desafia os leitores a fechar as páginas, caso não suportem as crueldades.

Já na carreira eclesiástica, não deixa por menos e escancara as mazelas intramuros do mundo religioso. É quando surgem o sexo oculto, a homossexualidade dos padres e as relações íntimas que ele mesmo mantivera com as devotas que o procuravam para as confissões rotineiras.

Sua trajetória de desatinos continua crescendo ainda mais ao final, quando encontra respaldo num fértil cenário para atos sempre mais atrozes. Estamos entre o final da década de 60 e o início dos anos 70, período em que a ditadura dava as cartas no Brasil.

Aliás, utiliza o sacerdócio para se aliar aos torturadores e agir, como infiltrado, em grupos que atentavam contra o regime, tudo no intuito de torturar e executar presos políticos. Daí em diante, há perturbadoras descrições das piores torturas de que também participara, com prazer, e em circunstâncias plenas de requintes bárbaros.
Volto ao desafio: lacre as páginas, se você não resistir. “Queime-as, rasgue-as”, para reproduzir as palavras de um personagem cruel, criminoso, abjeto.

Estamos, contudo, diante de uma obra que não almeja ser panfletária ou de cunho político em razão de se valer também de circunstâncias de anos sombrios. Trata-se, isto sim, de um romance em que sobra a coragem de expor males que costumam chocar, mas que não podemos desconhecer que existiram, existem e continuarão existindo.

Um daqueles livros polêmicos e fartos em análises e intercessões com outros clássicos, além de escrito com o talento das palavras propícias a um texto impactante. Em um dos dizeres da crítica, “o grande romance da literatura brasileira vinculado à descrição e contemplação do mal que nos circunda e atinge, mas que tentamos ignorar…”

ALBERTO CALIXTO MATTAR FILHO escreve quinzenalmente às quintas nesta coluna (mattaralberto@terr.com.br)