Opinião

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21 de dezembro de 2023

ALBERTO CALIXTO MATTAR FILHO

Literatura de fim de temporada

Se fizermos conjecturas filosóficas sobre o tempo, vamos perceber que datas não passam de meros símbolos, e não ocorreria propriamente o fim de um ano, de uma década ou de um século, mas, sim, o prosseguir da frenética marcha da humanidade em seus anseios constantes.

O fato é que estamos envoltos em toda sorte de acontecimentos que determinam o ritmo que daremos ao nosso comportamento e influenciam as decisões que deveremos tomar perante caminhos normalmente diversos.

Inegável, pois, que esperanças e frustrações estão e estarão sempre por aí, e o que nos cabe é encontrar o equilíbrio entre as ambivalências. Talvez o que a vida queira de nós, como diria Guimarães Rosa, é coragem. Coragem até para não que não nos percamos sob as ondas de eventuais êxitos, ou nas labaredas da vaidade, do fanatismo ideológico, da deslealdade e da estupidez.

Vocês são testemunhas de que fiz e tenho feito da literatura uma parceira indispensável. A literatura, ao longo das décadas, tem me servido de espécie de abrigo para a imensidão das polêmicas que nos circundam e se esvaem ao sabor dos ventos.
Confesso que a literatura alivia minhas angústias e ainda me traz esperanças. Tentar propagá-la não é fácil, mas é o que mais me move neste espaço e o que me sustenta espiritualmente.

A propósito, eis que me surgem os personagens de Dostoiévski, este criador fenomenal de tipos marcantes. Estar diante dos personagens de Dostoiévski é sentir as raízes profundas da existência.

Já dizia o biógrafo Joseph Frank que “os romances de Dostoiévski, nos quais os principais personagens frequentemente lutam contra aspectos reprimidos de sua personalidade e cuja psicologia é, na maioria das vezes, tão antagônica, atraíram a atenção de Freud e do seu crescente exército de discípulos….”

Quando li “O Idiota”, um calhamaço típico para iniciados em outros de seus romances, já que estamos diante da complexidade de um enredo de 683 páginas, pude observar as relações do protagonista, o príncipe Míchikin − o idiota do título −, com vários outros personagens que viviam entre São Petersburgo e Moscou durante a segunda metade do século XIX.

Na realidade, quase nenhum fato se desenlaça no instante em que os diálogos ocorrem no extenso romance. Sempre resta algo para deslindes em momentos posteriores. A imagem que melhor se assemelha ao enredo talvez seja a de uma imensa teia de aranha em que os caminhos entre os personagens costumam se entrecruzar para manter o clima de mistério e os desejos do leitor em alta.

Percebe-se, então, que a obra vai adquirindo força, justo pela a ausência de conclusões em tantos encontros. Não possuem realmente tanto valor os acontecimentos em si, mas adquirem destaque a reação e a análise psicológica do que expressam os referidos personagens nas várias situações, já que o leitor fisgado por Dostoiévski insistirá em buscar no íntimo de cada um deles os motivos de suas problemáticas trajetórias.

Nas páginas 519 e 520, ocorrem, pela voz do narrador, análises tão densas sobre traços de personalidade de certos indivíduos, que somos levados a pensar na semelhança com muitos à nossa volta, no dia a dia. Trata-se daqueles que, talvez conscientes de suas limitações intelectuais, querem parecer superiores, tudo à revelia das frágeis condições que ainda nutrem para voos maiores.

“Para um homem comum e limitado, por exemplo, não há nada mais fácil do que se imaginar um homem incomum, original e deliciar-se com isso sem quaisquer dúvidas.” (pág. 520)

Se a literatura, na definição mais corriqueira, significa uma das formas de recriar a realidade com base nas experiências dos escritores, nada mais humano do que os personagens de Dostoiévski em suas atmosferas de dramas, ora misteriosos, ora extravagantes, e, por vezes, até com aparência de banais. Mas essencialmente humanos – é preciso reiterar.

Literatura e vida. Vida e literatura, este binômio inseparável que ocorre nos meandros da imaginação, da liberdade e do talento para dar forma às histórias e às condutas.
Ainda vivemos em um Brasil que lê muito pouco.

Não se esqueça, todavia, de que aos municípios cabe, dentre outras competências, impulsionar políticas próprias de acesso aos livros, já que o verdadeiro desenvolvimento não pode jamais prescindir do ato de ler, sobretudo o acesso às grandes obras.
Somos passageiros. A literatura, no entanto, é eterna. Precisamos valorizá-la sempre mais.

ALBERTO CALIXTO MATTAR FILHO escreve quinzenalmente, às quintas, nesta coluna (mattaralberto@terra.com.br)