Opinião

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26 de outubro de 2023

ALBERTO CALIXTO MATTAR FILHO

“Casei com um comunista”, de Philip Roth

Foi minha segunda experiência com esse escritor absolutamente fabuloso. Philip Roth é considerado um dos grandes nomes da literatura norte-americana. Nascido em Newark, do Estado de Nova Jersey, em 1933, e falecido em Nova York, em maio de 2018, chegou a receber importantes prêmios literários, menos o Nobel.

Na primeira oportunidade, li Everyman, cuja melhor tradução para nossa língua é “Homem comum’, um curto romance de 119 páginas e sobre o qual aqui publiquei um texto que também inseri na segunda edição do meu livro. Gostei muito.

Desta vez, após ler algumas páginas de “Casei com um comunista”, não tive dúvidas em penetrar a obra, que é bem mais longa e densa do que “Homem comum”. Em quase 400 páginas, Roth confirma o poder que a literatura possui em aliar espíritos de época e histórias de vida.

Philip Roth, ao criar um romance ditado por um forte contexto político nos EUA após o término da Segunda Grande Guerra, também nos torna cativos dos personagens que constroem o vasto enredo.

Tudo se passa durante o Macartismo, uma estratégia política criada pelo senador americano Joseph MacCarthy, nos final dos anos 40, para a perseguição aos comunistas em geral. Não só aos verdadeiros, mas àqueles que simplesmente eram assim rotulados. Uma caça às bruxas para prevenir os perigos da influência soviética.

O protagonista Nathan dá início à história, quando, após décadas, se encontra com o antigo professor Murray, que era irmão de um sujeito chamado Ira Ringold, com quem Nathan manteve fortes laços de admiração e amizade. Ira é o comunista que dá título ao romance e havia se casado com uma famosa atriz de rádio daquela época, Eve Frame.

Por certo, é preciso ir desvendando os episódios, que são narrados sob um revezamento de vozes entre Nathan e Murray. Logo se nota que Murray e seu irmão Ira Ringold entram nas listas de sujeitos perseguidos pelo Macartismo. Ira era esse extremista, com pensamentos e atitudes contrários aos princípios políticos dos EUA. Murray, um intelectual, não merecia ter sido alvo.

Sobre o casamento com Eve, o enlace foi até uma forma proteção a Ira, pois ela era uma atriz emergente que só pensava em alavancar a carreira, com ótima recepção nos ambientes artístico e midiático dos EUA. Embora opostos em ideias e gostos, a paixão aflorou. O desejo entre os opostos costuma ser estimulante.

Já o título em si é mais bem esclarecido ao final, quando se sabe que, após sérias divergências no matrimônio, Eve, auxiliada por um jornalista interesseiro, assina a escrita de um livro chamado “Casei com um comunista”, que expõe sua problemática união com Ira para a sociedade americana e que foi utilizado como propaganda política contra o próprio comunismo.

Os conflitos envolviam a relação do marido com sua filha de outro casamento e as questões ideológicas que ele sempre defendeu. Ira, que tivera uma história farta em experiências de trabalho e também havia se transformado em um bom ator de rádio, acaba arruinado pela vida posta a nu no livro de Eve.

A riqueza da obra consiste, pois, na imensidão de circunstâncias da vida do casal e de todos em seu entorno, o que surge nos profundos diálogos entre Nathan e Murray, com a revelação dos motivos do comportamento de Ira e das turbulências do amor que vivera com a atriz.

O que mais nos envolve, no entanto, nem são as ideias expressas por Ira, nem as de Eve, nem as das pessoas de seus círculos. O que impressiona mesmo o leitor é o extraordinário talento de Philip Roth em expor tantas razões ou análises a respeito do que então ocorria e norteava aquelas condutas.

Assim, com base nos personagens, temos uma espécie de crítica às pessoas que aderem cegamente ao radicalismo das ideologias políticas ou aos interesses de ocasião. Um imenso cenário para a observação das hipocrisias, das frivolidades e das ilusões que não se sustentam.

Philip Roth, por meio da voz do professor Murray, talvez seu alter ego, vai então trazendo pensamentos sobre a estupidez das questões excessivamente político-ideológicas e as consequências do fanatismo. Em certos instantes, Murray brada pela libertação da arte e da literatura de qualquer objetivo que não seja a pura e simples criação livre de amarras. Perfeito.

Noutros momentos, faz um passeio brilhante pela história das traições humanas. São páginas em que aborda o ato de trair como algo sempre presente no coração do homem. E o enredo é, sim, repleto de traições, inclusive as por anseios políticos.
Não tive como ler a obra sem anotar inúmeras passagens. Ainda que um importante contexto lhe dê sustento, trata-se, principalmente, de um romance sobre a vida dos personagens em seus alcances, obsessões, infortúnios, paixões, amores e ódios.

Um romance de uma beleza ímpar que nasce das mãos de um escritor que sabe, como outros grandes nomes, demonstrar a interdependência entre as nuances da vida e a literatura.
A literatura em sua forma peculiar de nos transmitir a história. Ou as histórias de cada um.

ALBERTO CALIXTO MATTAR FILHO escreve quinzenalmente, às quintas, nesta coluna (mattaralberto@terra.com.br)