Opinião

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28 de julho de 2023

ALEXANDRE MARINO

Arredores vazios

É um desses dias frios de julho, talvez seja um dia atípico, porque mesmo para julho o frio parece excessivo, ou talvez não seja, porque é ainda muito cedo e o sol nem apareceu, ou será que o sol perdeu a hora? O dia está claro mas o céu está totalmente encoberto, se eu não soubesse que estou de frente para o leste eu não saberia em que ponto desse céu o sol deveria nascer, ou já nasceu e está escondido, o fato é que faz muito frio e minha sombra não me acompanha na caminhada pela cidade ainda adormecida.

Mas para onde vou se as ruas estão assim desertas? Não importa aonde vou, o que importa são os meus passos, as calçadas onde piso e o caminho que se apresenta à frente. Começa a ventar, o que intensifica o frio e interfere no meu pensamento. Não quero pensar em nenhum tema objetivo, não quero saber o que os jornais noticiarão hoje, qual será a fofoca do dia das redes sociais, quem perderemos, quem nos decepcionará, qual será o escândalo do dia. Quero apenas manter meu equilíbrio e minha sanidade. É só o que me importa agora.

Caminho como se o ambiente fosse totalmente estranho, como se estivesse em outro país ou outro planeta, a ausência de outros caminhantes reforça essa ideia. As calçadas estão empoeiradas, cheias de folhas secas. Quem as limpa ainda não começou o trabalho. Há muitas árvores ao longo do trajeto, e elas dançam ao ritmo do vento.

Perdem as folhas, como acontece em todos os invernos, quando param as chuvas e o vento seco as maltrata. Sem as folhas, parecem desagasalhadas, contorcem-se de frio, e cada vez mais deixam ver seus aleijões, suas mutilações, marcas das agressões que sofreram. São árvores altas, porém frágeis em seu desequilíbrio, faltam-lhes galhos, falta um apoio que lhes dê altivez e segurança para executar sua dança.

Passo ao lado de um comércio e, depois de certo esforço do olhar, identifico um indivíduo vestido de preto, protegido do frio por um largo casaco com capuz, segurando uma mangueira de borracha por onde jorra um forte jato de água. É parecido com um robô de formas humanoides, graças à sua postura imóvel ali sob a marquise, e mais ainda por deixar a água jorrar sem direção nem sentido nesse tempo de seca.

Talvez seja um disfarce, por não querer ser notado; talvez seja o inverso, uma espécie de espantalho urbano em que alguém prendeu uma mangueira por onde jorra a água formando poços de lama sobre a calçada. “Bom dia”, eu lhe digo. Não ouço resposta.

O vento diminui, mas o sol continua escondido por trás das nuvens. Identifico-me com as aves que começam a voar em alta velocidade, como se também fugissem de um mundo estranho. Algumas pousam nas árvores próximas, ouve-se um canto aqui e ali, dando início àquela comunicação entre as várias espécies. Tenho impulso de parar um pouco para observá-las, mas sigo em frente.

Sinto que não querem ser observadas, disfarçam sua presença entre os galhos e folhas que ainda restam, e se tomam a liberdade de emitir seu canto é porque estão certas de que não serão vistas. Quando passo perto de uma árvore, ouço um canto (posso chamar isso de canto? Parece mais um grito, um alerta) que logo é respondido por outro pássaro em outra árvore. É um código que usam para que os demais se atentem ao perigo que se aproxima. Não sou perigoso, mas não importa. Um corpo em movimento, mais ainda se for humano, sempre representa perigo.

Observo que o perigo tende a aumentar, porque outras pessoas começam a aparecer pelo caminho. Não que o frio tenha diminuído, o que acontece é que as pessoas precisam começar o dia. Agasalhados, preocupados, deprimidos, introspectivos, outros indivíduos, homens e mulheres, começam a passar por mim.

Alguns levam nas mãos um copo de plástico, provavelmente um café adquirido próximo à parada do ônibus, e um sanduíche, ou um pedaço de pão insosso. Não tiveram tempo para um café tranquilo em casa, ou talvez tenham em casa apenas uma prateleira vazia. Outros nada comem, mas debruçam-se com ansiedade sobre um telefone celular, como se o mundo estivesse todo ali dentro e o entorno fosse um grande vazio.

Passo ao lado de um campo de futebol onde nunca se joga futebol. O gramado, surrado pelas intempéries, serve apenas às aves que ciscam ou aos cães humanizados que outros robôs tentam comandar de forma incerta. Ao fundo, atrás do gol que faz limite com o terreno de uma igreja, há um volume coberto com um pano roto, que ao me aproximar percebo que é uma pessoa dormindo.

Um morador de rua que tenta se acostumar com o frio, mas não é com o frio que se acostuma: é com a indiferença e o desprezo dos passantes. Não vejo movimento algum, e se aquela pessoa morreu de frio na madrugada, mais tarde algum morador da vizinhança, ou algum policial, perceberá. Eu sou mais um a passar e observar. Todos nós passamos pelas calçadas e às vezes nem observamos qualquer coisa, o mundo é um grande deserto hostil por onde caminhamos, apesar do frio, do vento, da indiferença alheia, das árvores moribundas, dos pássaros perplexos, da água que evapora sobre a calçada.

ALEXANDRE MARINO, escritor e jornalista em Brasília/DF, escreve quinzenalmente às sextas nesta coluna