Opinião

 “O avesso da pele”, de Jéferson Tenório

25 de abril de 2024

ALBERTO CALIXTO MATTAR FILHO

Acompanhei recentemente as polêmicas em torno de “O avesso da pele”, a obra de Jeferson Tenório. Nascido no Rio de Janeiro, em 1977, Tenório vive em Porto Alegre, é doutor em teoria literária e possui alguns livros já reconhecidos por parte da crítica.

Aliás, bem antes das controvérsias que vieram à tona, eu havia lido matéria sobre o lançamento do romance, que se deu em 2020. É sempre importante conhecer as tendências da literatura atual, mesmo que ainda estejam bem distantes dos clássicos indispensáveis.

Ao ler aquela resenha no caderno cultural do “Estadão”, não me senti atraído pelo enredo. Mas, nos últimos quatro anos, experimentei dois dos livros recentes de maior repercussão na literatura brasileira: “Torto arado”, de Itamar Vieira Júnior, sobre o qual aqui deixei minha opinião, e “Tudo é rio”, de Carla Madeira, que não me motivou a escrever.

Tanto um quanto o outro são muito bem escritos e nos postam diante de aspectos também fundamentais na criação literária, como a forma de escrever, o contato com a língua pátria e o passeio por nossas questões culturais e históricas. No entanto, ambos não me despertaram o desejo de voltar a ler Itamar Vieira Júnior e Carla Madeira.

Se, em “Torto arado”, o racismo fomenta o enredo, em “Tudo é rio”, temos a história de uma prostituta e seus entornos em uma pequena cidade do interior. O texto de Carla até começa bastante atraente, mas logo descamba para o edificante das mudanças de rumo e o inverossímil, ao molde das novelas televisivas. Do cáustico para o melífluo.

Voltemos, todavia, a “O avesso da pele”. O que me fez nascer a intenção de penetrar suas páginas foi o movimento contra a obra iniciado no interior do Rio Grande do Sul. Em especial, pela diretora de uma escola em Santa Cruz do Sul.

É que o romance havia sido incluído em um programa para alunos do ensino médio, o PNLD (Programa Nacional do Livro Didático). Ao alegar que o texto contém expressões sexuais de baixo calão, a diretora solicitou ao Ministério da Educação que o retirasse do programa. A iniciativa foi seguida por escolas de outros Estados − alguns já mudaram de ideia e passaram a admiti-lo.

Embora as proibições, muitas vezes, sejam necessárias em inúmeras circunstâncias, por outro lado, podem se transformar em impulso ao desejo. Assim, os movimentos contrários à censura começaram a ocorrer Brasil afora, e as vendas aumentaram. Decidi, pois, formar por mim mesmo, uma opinião a respeito do livro.

A princípio, adianto que, após percorrer, em poucos dias, as 188 páginas, não vejo razão nenhuma para censuras, proibições ou retiradas de programas didáticos. Se há certas frases mais explícitas de cunho sexual, nada disso é novidade no universo da literatura.

De mais a mais, os jovens, desde muito, já convivem com esse tipo de linguagem entre si. Seria, afinal, ridículo não reconhecer que a literatura e a vida são faces indissociáveis. E Jeferson Tenório − utilizando episódios das últimas décadas − se propõe a ser explícito justo para ressaltar os preconceitos estruturados contra a raça negra no Brasil.

Uma vez definida a questão lateral da tentativa de bloqueio por fatores vocabulares, passemos ao enredo em si. É fato que o racismo não deixa de ser assunto incômodo e gera amplas possibilidades de análises por diferentes momentos da história.

Na obra, temos o filho e o pai negros, um relato de suas relações familiares e sociais por meio de um estilo ágil e fácil de ler. A todo instante, o filho se dirige ao pai já morto, sob diálogos imaginários. A voz do filho narrador em primeira pessoa assume uma roupagem de segunda pessoa, como expresso na orelha da edição.

O texto é doloroso e até catastrófico em relação aos preconceitos, inclusive o que causou a morte absurda do pai, e há os riscos de ser visto pelo ângulo do vitimismo da raça negra, o que não é o ideal para ninguém, nem pretos, nem pardos, nem brancos.

Independentemente, porém, dos focos em aspectos tão dramáticos, trata-se até de uma boa oportunidade para os professores tentarem abordar com o máximo de racionalidade o tema do racismo.

Reconheço que o assunto é complexo e enraizado por gerações. Mas é preciso que se transmita aos alunos, de maneira assertiva, que, hoje, não se admite esse tipo de discriminação.

Até os eventuais exageros do enredo podem servir de estímulo ao senso crítico. Talvez, uma estratégia de enaltecer o princípio de que todos são iguais perante a lei, que todos são sujeitos merecedores de respeito e não podem ser considerados apenas pela cor da pele.

Se Jeferson Tenório carrega nas tintas das consequências de um racismo estrutural de longo tempo, cabe aos professores e aos pais usar os fluxos dos extremos para reforçar a necessidade de tratamentos no mínimo dignos a quem quer que seja.

Vamos, portanto, elucidar o complexo, apesar das dificuldades, e transmitir mais conhecimento literário e menos militância de raças ou valores. A tentativa de censura a “O avesso da pele” em nada contribui para isso e é uma das faces evidentes da burrice.

Na verdade, quaisquer tipos de censura sempre acarretam mais problemas do que as soluções que almejam encontrar. A história é repleta de exemplos.

ALBERTO CALIXTO MATTAR FILHO escreve quinzenalmente, às quintas, nesta coluna 9mattaralberto@terra.com.br)