Opinião

Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa

24 de julho de 2025

Na última semana, durante o início da 9ª edição do Festival Nacional de Teatro de Passos e Região, em um monólogo protagonizado por Giuseppe Oristanio sobre Guimarães Rosa, fui tomado pelo desejo de republicar um dos textos que já escrevi a respeito das obras de Rosa, no caso, o extraordinário clássico “Grande sertão: veredas”.

Publiquei-o em novembro de 2017, quando começavam as recordações dos 50 anos de sua morte prematura, aos 59 anos, apenas três dias após tomar posse na Academia Brasileira de Letras. Tais momentos foram muito bem interpretados por Oristanio, com foco nos anseios do escritor por integrar a Academia, uma glória que lhe durou muito pouco.

Tornar-se reconhecido é um problema que deve incomodar a qualquer indivíduo que se decida a transmitir ao público algum tipo de arte. Em Guimarães Rosa, a literatura. Lidar com os fluxos da vaidade realmente nunca foi fácil.

Eis que vou me deixando levar pela peça, que merece, sim, elogios, mas o que pretendo aqui é trazer a vocês o texto sobre ‘Grande sertão: veredas”. Relembro-o, pois, nos parágrafos abaixo, como uma forma de reforçar a importância desse romance na história da literatura.

Ressalto, porém, que o faço com as alterações que o tempo sempre impõe às releituras e à escrita em si. Em essência, toda escrita significa um exercício de reescrita.

Como se sabe, João Guimarães Rosa nasce em Cordisburgo-MG, em 27 de junho de 1908, e morre no Rio de Janeiro, em 19 de novembro de 1967. Escritor, médico e diplomata por concurso, exerceu vários cargos como cônsul e embaixador do Brasil em outros países. Vasto currículo de um intelectual de renome.

Ao ler “Grande sertão: veredas” e pensar em publicar a resenha, seria importante também que minhas palavras viessem a ser o mais originais possível, pois muito já se disse sobre o autor e a obra. Sobretudo numa época em que se rendiam louvores à história de Rosa após 50 anos do dia em que nos deixou.

Adquiri o livro há mais de 15 anos e, em todas as tentavas de começar a leitura, não conseguia ir adiante das primeiras frases. Parece mesmo haver uma certa anuência sobre as dificuldades de se percorrer as densas 568 páginas. O próprio crítico Antônio Cândido se manifestou sobre a existência dessas barreiras.

Há, no entanto, outro consenso: na medida em que insistimos, também começamos a digerir o texto e a perceber sua originalidade e beleza.  Já absortos pela leitura, não abrimos mão de concluí-la.

Em um enredo com base na vida dos jagunços nos sertões, Guimarães Rosa alcança o dom de escrever ao estilo da fala e sintaxe que eles usavam, motivo das dificuldades que logo surgem no início. Mas, por outro ângulo, vamos percebendo, no transcurso da prosa, que estamos perante uma admirável revolução linguística.

Por isso, somos lançados a duas frentes, a história das extensas jornadas do protagonista Riobaldo, que narra a obra em primeira pessoa, em espécie de diálogo com um interlocutor imaginário, e o prazer de degustar o estilo tão típico da escrita. Diríamos que uma forma tão preponderante quanto o conteúdo.

Assim, as dificuldades do começo acabam diluídas, dado o envolvimento que nos acomete no decorrer dos capítulos Trata-se da linguagem truncada do sertanejo, porém repleta de simbologia cultural, uma vez que Rosa se vale da vida árida do sertão para nos oferecer os conflitos universais do amor, da guerra, da honra, da luta pela sobrevivência, do orgulho, da vaidade.

No caso do amor, por exemplo, ao narrar as afetuosas relações entre o protagonista Riobaldo e seu parceiro Diadorim, até antecipa as atuais e tão polêmicas questões de gênero.

“De que jeito eu podia amar um homem, meu de natureza igual, macho em suas roupas e suas armas, espalhado rústico em suas ações? Ele tinha culpa? Eu tinha a culpa?” (pág. 462).

Riobaldo é, portanto, um grande personagem da história da literatura, o sujeito rústico que não apenas se vê obrigado a agir para sobreviver em meio às carências, mas que é capaz de refletir sobre cada um de seus atos, desde as necessidades imediatas de uma batalha, até as entranhas dos próprios desejos, do comportamento humano e até da existência do mal na figura simbólica do diabo.

Ainda que sob a linguagem e os valores dos jagunços, surgem várias reflexões bastante pertinentes e que, sem dúvida, podem ocorrer a qualquer um de nós. Quem não teria experimentado ou se aproximado de algumas das angústias de Riobaldo, apenas com a diferença das circunstâncias?

Difícil concluir um texto sobre Guimarães Rosa e seu “Grande sertão: veredas”, tamanhas as aberturas que oferece, o que me conduziu a destacar muitas de suas expressões e até palavras típicas. Foi uma maneira de me envolver sempre mais.  Autêntico arsenal de nomes, palavras, expressões e ideias.

Como não há espaço para tantas, prefiro terminar com estas: “O senhor entende, o que conto assim é resumo; pois, no estado do viver, as coisas vão enriquecidas com muita astúcia: um dia é todo para a esperança, o seguinte para a desconsolação.”

 

   Alberto Calixto Matar Filho é autor de dois livros de resenhas literárias, Livros e Livros, volume dois, e escreve quinzenalmente, às quintas, nesta coluna. (mattaralberto@terra.com.br)