Opinião

A fera na selva, de Henry James

24 de outubro de 2024

Foto: Reprodução

ALBERTO CALIXTO MATTAR FILHO

 

Um dos aspectos positivos do mundo virtual são as relações que surgem com pessoas que gostam, amam, admiram um mesmo tema. Eu já havia visto comentários elogiosos do crítico Rodrigo Gurgel a respeito da obra, mas o amigo Carlos Amadi também o fez e foi além: entrou em contato comigo para que eu a lesse e, assim, pudéssemos compartilhar as experiências.

Henry James foi um grande escritor de língua inglesa. Nascido em Nova York, em 1843, ainda na adolescência, viaja com a família para países como Inglaterra, França e Suíça, uma vez que seu pai era muito culto e pretendia que os filhos tivessem acesso a elevados níveis de educação e cultura, com visitas a museus, concertos e bibliotecas.

Em meio a outras idas e vindas entre a América e o velho continente, chegou a estudar Direito em Harvard por volta de 1862, mas não foi adiante, já que a paixão que o nutria era mesmo a literatura. Estabeleceu-se, pois, em Londres, de forma definitiva, em 1875, onde publicou a maior parte de sua extensa e reconhecida obra, que inclui romances, contos, novela, ensaios, teatro.

Morre na própria capital da Inglaterra, em 1916, aos 72 anos, após receber, por lá, a Ordem do Mérito britânica e adotar a cidadania da mesma natureza.

Dados biográficos à parte, o que importa aqui é “A fera na selva”, uma das novelas que escreveu e que pertence, segundo os estudos, à última e mais madura fase de sua carreira. Publicada em 1903, possui um texto bem sucinto, próximo das 70 páginas, mas de uma impressionante densidade.

Somente um escritor de enorme talento consegue ser tão profundo em uma obra de estrutura e enredo mínimos. São apenas dois protagonistas, o burocrata John Marcher e a senhora May Bartram, que se reencontram, ocasionalmente, após muitos anos. No princípio do diálogo, percebe-se que mantiveram algum tipo de relação no passado.

Pois no exato instante do reencontro, tem início a essência da novela. Marcher diz então a May que havia revelado a ela, durante a juventude, que algo de absolutamente extraordinário iria lhe acontecer na vida, uma coisa estranha que o tomaria de surpresa e o atacaria de repente, como uma fera na selva prestes a abocanhar a presa. Eis a metáfora implícita no título.

De tal fato em diante, os encontros começam a se suceder em forma de rotina e, por isso, dão impulso aos diálogos, sempre com a questão central em jogo, aquele fato excepcional que Marcher continua esperando que lhe aconteça. Ao insistir com May a respeito, imagina até que ela saiba do que se trata, mas as dúvidas persistem nos fluxos de consciência de Marcher e nas palavras do próprio narrador.

O que cabe observar, porém, são principalmente as sutilezas da linguagem e os meandros do que ocorria nos pensamentos de cada um. Ainda que haja expectativas pelo desfecho de uma relação complexa, a experiência da leitura abre caminhos para que o leitor perceba, por outro lado, a imensa capacidade de Henry James em arquitetar situações tão íntimas.

Estamos muito mais perante um arsenal de profundas conjecturas do que de fatos que ocorreram ou venham a ocorrer. Uma espécie de mergulho no que se passa na consciência de ambos, sobretudo de Marcher, que continua delirando sobre o que teria acontecido ou ainda estivesse por vir. Mesmo os vácuos de silêncio que lhes surgem são significativos. São silêncios que dizem ou pretendem dizer algo.

Assim, enquanto ardemos de desejo pela luz do enigma, mais imersos estamos nas páginas. O que terá sido ou será, afinal, a coisa inusitada que Marcher quer desvendar ao ritmo do pensamento obsessivo que o domina? Em que momento, a raridade, sob o símbolo de uma faminta fera na selva, o fará sucumbir?

Os diálogos e a obra caminham então para o fim, quando um fato derradeiro, trará à tona o mistério e surpreenderá o leitor, não sem que o faça seguir interpretando as reflexões incomuns daquele homem.

Os grandes clássicos da literatura jamais se esgotam. Quando lemos romances como “Dom Casmurro”, “Grande sertão: veredas” e tantos outros, sentimos a força de seus efeitos para sempre.  Não há finais tão conclusivos, mas mensagens a respeito da natureza humana que permanecem como fonte de experiência da nossa conduta.

O que Henry James constrói, em “A fera na selva”, é de inegável genialidade, o que faz com que a novela, aliás, de difícil tradução, prossiga impulsionando a imaginação de quem a penetrar com a entrega que o texto merece.

Quantas vezes não esperamos por algo de extraordinário para suportar o tédio que pode nos atacar a qualquer momento? Em que inúmeras situações não nos sentimos mais especiais do que, na realidade, o somos? Em quantas ocasiões não optamos por nos iludir?

“A fera na selva”, uma obra farta em ângulos fundamentais da existência, como o amor, a solidão, as aparências, as ilusões e os dilemas que costumamos viver entre aceitar a realidade e almejar o grandioso.

 

ALBERTO CALIXTO MATTAR FILHO escreve quinzenalmente, às quintas, nesta coluna (mattaralberto@terra.com.br)