9 de janeiro de 2025
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ALBERTO CALIXTO MATTAR FILHO
Muito já se disse sobre Graciliano Ramos, mas, para um escritor de sua grandeza, sempre será possível ressaltar algo. Eis que, depois de tanto tempo, retorno a uma das obras mais simbólicas que escreveu, o clássico “Vidas Secas”.
Na verdade, a distância não é tão grande. Há dois anos, li “Angústia”, um romance potente sobre o ciúme e as obsessões doentias de um personagem, que, perdidamente apaixonado após alguns encontros com a mulher que desejava, percebe que ela o abandona por outro homem.
Experiências bem mais antigas tive, isto sim, com dois de seus clássicos não menos famosos, “São Bernardo”, que mereceria uma releitura, tamanhas as considerações que lhe devotam os críticos, e os dois volumes de “Memórias do Cárcere”, um livro que testemunha o período de sua prisão por dez meses, entre 1936 e 1937, uma vez acusado, em tais anos, de se opor à ditadura de Getúlio Vargas.
Quanto a “Vidas Secas”, lembro que me fora exigido − provável que a muitos de vocês −, nos anos de colégio, assim como prossegue sendo nos dias de hoje. Não só como leitura integral, mas em forma de exemplos de vários trechos da obra, espécie de exercícios para estimular os alunos a lidarem com os níveis da escrita literária e mais elaborada.
Pois Graciliano Ramos, para além da construção de enredos ou testemunhos de época, representa uma autêntica aula sobre o ato de escrever. Destaco o que manifestei em análise, aqui na coluna, sobre “Angústia”: … não basta para o texto literário a boa história. Imprescindível também é a maneira ou forma que será utilizada para transmitir as ideias.
Assim, nas obras de Graciliano, lá está, em absoluta plenitude, a harmonia entre conteúdo e forma. Conciso e exigente para consigo próprio, ele procurava usar as palavras e as frases com bastante economia, mas de modo suficiente para impactar o leitor.
Conciso, porém não se esqueça de que em busca da essência que jaz na consciência dos personagens, sejam pensamentos bons, ruins, desoladores, ou até torturantes. Uma concisão que jamais o impediu de criar imagens agudas, seja nas descrições ambientais, seja no mais íntimo dos personagens.
É o que se dá em “Vidas Secas”, Em cenários de aridez e miséria de retirantes nordestinos que buscam escapar do sol inclemente, surge, por outro lado, o texto com todos os requintes da força, da fraqueza ou de quaisquer eventuais delírios dos protagonistas.
Mesmo as limitações do ambiente físico, aquelas tão terras castigadas pela seca, não impedem o escritor de penetrar a imaginação de pessoas apenas circunscritas à luta pela sobrevivência. Sua escrita vai sempre além, com o intuito de explorar sentimentos muitas vezes até ilusórios e fugazes diante do implacável flagelo geográfico.
Aliás, segundo os ensaios do crítico Álvaro Lins, o que nos faz notar a beleza artística da literatura de Graciliano Ramos não são os movimentos exteriores, mas as emoções que se passam na consciência dos personagens. Sim, nenhum obstáculo pode conter o ímpeto do que emerge da alma.
São reflexões densas e com frases curtas. Muitas vezes, uma simples palavra já se mostra suficiente para elucidar a força da introspecção. Esse é seu estilo. Escrever o mínimo par dizer o máximo.
Em apenas 154 páginas, o texto de “Vidas Secas” traz, portanto, à luz o sofrimento daquela família de retirantes, um casal, dois meninos e uma cachorra, Baleia, com todos os fluxos dos monólogos interiores do protagonista, o pai Fabiano, um sujeito rústico e que expõe, quase que a todo instante, o que imagina em torno do caos de terras arrasadas.
Todavia, se, em “Angústia”, “São Bernardo” e “Memórias do Cárcere”, os textos se mostram pessimistas e até cruéis em relação à condição humana, em “Vidas Secas” ainda ocorrem alguns lampejos de esperança, mesmo com toda a adversidade pelo caminho.
Sempre fui um fã de Graciliano Ramos. Ao lado de Machado de Assis e Guimarães Rosa, o alagoano é, sem dúvidas, um dos maiores nomes da literatura brasileira. Por que não da própria história da literatura em si? Estilos diferentes, claro. Mas indispensáveis a quem almeja evoluir na língua pátria.
Num momento em que prepondera, nas telas, o excesso de vídeos curtos e fragmentos de discursos de toda ordem em razão da veloz tecnologia dos algoritmos, ler Graciliano se transforma em objetivo a ser insistentemente perseguido pelas escolas e pelos pais, que deveriam, por seu turno, oferecer o exemplo da leitura aos filhos.
Ler Graciliano se constitui em uma excelente tentativa de superar o incômodo de muita coisa descartável e, quem sabe, poder atingir patamares muito mais amplos de linguagem e compreensão de textos.
De compreensão da vida em suas várias faces, eu acrescentaria.
ALBERTO CALIXTO MATTAR FILHO escreve, quinzenalmente, às quintas, nesta coluna (mattaralberto@terra.com.br).