4 de julho de 2024
Foto: Reprodução
ALBERTO CALIXTO MATTAR FILHO
Em pouquíssimas ocasiões, anos atrás, cheguei a publicar minicontos de minha autoria neste espaço. Foram apenas dois. Desconheço os motivos por que não me arrisquei a outros. Talvez por ter preferido transmitir, ao longo da estrada, as impressões que tantas obas literárias me provocaram.
Aliás, dia desses, em papo com um dos amigos que surgem pelo mundo virtual −, também apaixonado por livros −, eu lhe dizia da infinidade do universo da literatura, enquanto ele replicava que isso é algo fascinante. Sim, concordo. Sempre teremos a chance de ler o que ainda não lemos.
Por isso, corri novamente até uma de minhas fontes, a coletânea do professor Ítalo Moriconi − que aqui já mencionei em oportunidades pretéritas −, “Os cem melhores contos brasileiros do século”, e lá deparei com mais um clássico do género, “A nova dimensão do escritor Jeffrey Curtain”, de Marina Colasanti.
Marina Colasanti é uma escritora, jornalista, tradutora e artista plástica ítalo-brasileira. Nascida, em uma colônia italiana, no ano de 1937, veio para o Brasil em 1948, onde ainda vive. Dona de vasta obra, publicou mais de 70 livros para crianças e adultos, além de ter recebido muitos prêmios.
Em relação aos contos, lembro-me sempre da analogia com o box feita pelo argentino Júlio Cortázar. Cortázar defendia a ideia de que o romance, por sua extensão, é o gênero que vence o leitor por pontos, ao passo que o conto, por seu impacto concentrado, ostenta o poder de derrubá-lo por nocaute.
Pois é o que se dá nas poucas três páginas e meia de “A nova dimensão do escritor Jeffrey Curtain”. Basta começar e lá estamos diante de um relato bastante curto, porém denso e envolvente do início ao fim. Talvez, nem tanto pela conclusão, que se torna aberta a interpretações, mas pela maneira sutil e bela com que Marina Colasanti arquiteta um tema tão sensível.
Logo nas primeiras frases, já se sabe que o escritor Jeffrey Curtain sofre um derrame cerebral que paralisa totalmente seu corpo, exceto os pensamentos, a imaginação. Um drama à maneira de tantos que passam a viver uma vida sem movimentos, quase que vegetativa, e sob a necessidade de cuidados diários.
Uma vida que pode ser considerada uma espécie de morte. Ou o oposto, uma morte em vida. Eis a tragédia daquele escritor, que passa a ficar na dependência não só de medicamentos, mas também de uma enfermeira e de Roxane, sua mulher, que tanto o amava. Triste sina. E os médicos eram taxativos. Não havia nenhuma esperança de recuperação. Restava a agonia de aguardar o silêncio definitivo.
Na pequena cidade em que morava o casal, todos se referiam a ele como se já estivesse morto. Entretanto, Roxane e os demais vizinhos nunca haveriam de suspeitar de que Jeffrey, embora desconectado dos movimentos físicos, já vivia intensamente em outra dimensão.
A paralisia do corpo, esse fato tão trágico aos olhos de todos, tornava-o, isto sim, livre dos desejos fisiológicos para lançá-lo à mais profunda abrangência dos pensamentos. Como escritor que sempre fora, atingia, em razão da doença, o nível mais fértil que pudesse almejar.
Jeffrey poderia, assim, viver da imaginação frequente, absoluta e sem as amarras dos desejos comuns, como, por exemplo, fome e sexo, esses impulsos tão dominantes. Da mesma forma, estaria livre dos problemas do cansaço e de outros aspectos que também se originam do corpo.
Aí está a riqueza do conto: abordar um drama que destrói as emoções dos que são próximos de uma vítima de doença fatal, mas com a abertura de ângulos que aguçam o leitor e suplantam o senso e as atitudes comuns.
Ao narrar o impacto do ocorrido com aquele escritor, Marina Colasanti nos faz, portanto, cativos do texto. Para cada uma das reações conhecidas para fatos drásticos como a ausência de movimentos e a vida vegetativa, surge a ampliação para faces ocultas que jazem apenas no íntimo do protagonista.
Percebe-se, de imediato, que o sofrimento e a tristeza que, por certo, sentiríamos, caso uma tragédia de tal natureza ocorresse com algum de nossos familiares ou amigos, acabam sendo exclusivamente nossos, pois, na obra, o escritor Jeffrey Curtain já partia para outro nível de existência.
A inércia do corpo, ao contrário da dor que causava a Roxane, transportava-o para mundos desconhecidos, para o pensamento sem os costumeiros limites ou obstáculos do dia a dia, para uma dimensão muito além do que nos é dado conhecer, muito além da nossa ignorância.
“Jamais, olhando o vivo cadáver do marido, suspeitaria Roxane da intensa movimentação que o habitava…seu estado era um só…ele mudava de tempo e de país, dialogava com os vivos e agia com os mortos, dançava como nunca havia dançado, cavalgava, respirava no fundo da água e voava, voava.”
Em três páginas e meia, Marina Colasanti apresenta o belo da plena harmonia entre conteúdo e forma. Um alcance em termos de impacto, criatividade e figuras de linguagem que só a autêntica literatura pode oferecer.
ALBERTO CALIXTO MATTAR FILHO escreve quinzenalmente, às quintas, nesta coluna (mattaralberto@terra.com.br)