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Um clássico de Mikhail Bulgákov

Foto: Reprodução

ALBERTO CALIXTO MATTAR FILHO

 

Dos grandes temas da literatura, as abordagens sobre o bem e o mal costumam me atrair. Não me refiro ao bem e ao mal absolutos, extremos, mas às zonas nebulosas entre os dois estados. Seres complexos que somos, nem sempre são claros os caminhos a seguir quando estão em jogo nossos anseios.

Nos tempos recentes, venho manifestando a admiração por Thomas Mann, que elabora personagens que expressam grandes embates filosóficas sobre a arte, o amor, a vida, a morte, o inferno e as intercessões ou dualidades entre pecado e salvação, fé e descrença, religiosidade e prazeres libertários.

Mas não fiquemos somente em Thomas Mann. Goethe já havia oferecido, um século antes, os dilemas de seu “Fausto”, que influenciou o “Dr. Fausto” do próprio Thomas. Aliás, não podemos nos esquecer de Tolstói e Dostoiévski em seus personagens que transitam entre a culpa e a redenção, ou até Georges Bernanos, em “Sob o sol de satã”.

Que bom que a literatura é tão vasta! Meses atrás, nesses raros momentos em que podemos trocar ideias com quem sente a mesma devoção pelos livros, a amiga e escritora Lívia de Pádua Nóbrega me sugeriu a experiência com Mikhail Bulgákov, no clássico “O Mestre e Margarida”.

Bulgákov é um escritor e dramaturgo, que nasce em Kiev, na Ucrânia, em 1891, na época da dominação do império russo, e morre em Moscou, em 1940. Em sua curta e intensa trajetória, incluem-se o estudo da medicina e as divergências às políticas comunistas de Stálin depois da Revolução Bolchevique. Por volta de 1921, já vivendo em Moscou, decide se dedicar exclusivamente à literatura.

Após, todavia, publicar alguns contos e criar peças teatrais, ele começa a sofrer censuras por acusações de comportamento avesso às políticas da antiga União Soviética, fato que condicionou o seu grande clássico, “O Mestre e Margarida”.  Escrito entre 1928 e 1940, somente foi publicado, no ocidente, ao final da década de 60, e em 1973, na Rússia.

A obra possui um estilo bem próprio e se constitui em uma espécie de sátira ou vingança aos poderes de Stálin. Uma vez censurado e com a carreira destruída, restava a Bulgákov exercer a imaginação para trazer à tona a hipocrisia da sociedade soviética e, principalmente, dos meios culturais durante o regime do déspota.

Trata-se de um romance de 400 páginas, que também recebe as influências de “Fausto”, de Goethe, esse personagem tão simbólico. Atormentado por não obter respostas definitivas na busca do pleno conhecimento das ciências, das magias, da vida e da espiritualidade, Fausto se divide entre Deus e o diabo e acaba sucumbindo às tentações demoníacas.

No entanto, se, em Goethe e Thomas Mann, há uma profusão de reflexões sobre as angústias existências, em Bulgákov, prepondera uma sequência de acontecimentos fantasmagóricos em razão da presença do diabo e de seu séquito na Moscou daqueles anos, o que gerou verdadeira confusão no dia a dia da cidade.

Um diabo sob aparência comum, mas agindo com artifícios sobrenaturais para se transformar a todo momento e causar danos a quaisquer pessoas que desejasse. Tudo para desnudar a falência dos órgãos de Estado – inclusive os que determinavam os rumos da cultura − e os podres de uma sociedade de privilégios e interesses vis.

Na balbúrdia em curso é que aparecem os outros protagonistas, o mestre, um escritor, e Margarida, uma mulher que abandona o casamento, apaixona-se pelo mestre e tenta ajudá-lo a concluir um romance sobre os dramas de Pôncio Pilatos. O livro fora censurado por editores de Moscou por enaltecer o espírito revolucionário de Cristo, fato que trouxe grande desilusão e tristeza ao mestre.

Pois em tal aspecto, o da rejeição ou censura de um romance, está o maior dado autobiográfico do enredo de “O Mestre e Margarida”, já que o personagem passa pelos mesmos obstáculos que fizeram sofrer Bulgákov. Para melhor compreensão da obra, é necessário, portanto, que se pesquise o que ocorreu a seu criador. A leitura pura e simples não é suficiente.

Sim, nada tão dilacerante a um escritor do que o sentimento de injustiça provocado pela rejeição de um livro, não pelo valor literário que possui, porém pela posição política de quem o escrever ser contrária aos detentores do poder. Ora, isso não mais se admite em Estados que preservam os mínimos níveis de democracia e civilização.

E o diabo? Onde se situa em relação aos protagonistas? Pois bem, o diabo, representado pelo personagem Woland, é quem vai oferecer ao mestre e à Margarida o descanso e a paz eternos para que vivam o amor que os unia e, assim, haja condições para o mestre exercer a escrita na plenitude, sem a oposição de nenhum regime autoritário.

Claro que há muito a dizer sobre outras circunstâncias dignas de destaque, mas a essência está no fato de que ambos entregam a alma ao demônio para obterem o que, na vida terrena, não lhes foi possível.  Esses eternos paradoxos fáusticos entre o bem e o mal.

Repleto de alusões históricas e religiosas, um romance que surge com absoluta criatividade em seu enredo fantasioso e bem fundamentado pelo talento e conhecimento de Mikhail Bulgákov.

ALBERTO CALIXTO MATTAR FILHO escreve quinzenalmente, às quintas, nesta coluna (mattaralberto@terra.com.br)

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