29 de agosto de 2024
Foto: Reprodução
ALBERTO CALIXTO MATTAR FILHO
José Geraldo Vieira (1866-1977) é um renomado escritor, tradutor e crítico de artes, nascido nos Açores, em Portugal, e naturalizado brasileiro. Veio para o Rio de Janeiro com poucos meses de vida. Graduado em Letras, chegou a estudar em Paris por um período, e, quando de volta ao Brasil, forma-se em Medicina no ano de 1919. Logo em seguida, constrói sua grande obra literária. Dono de imensa cultura, traduziu nomes como Dostoiévski, Tolstói, Stendhal e Joyce.
Evidente que sempre estaremos em falta com este ou aquele escritor, esta ou aquela obra. Que bom estar sob tamanha riqueza! Há tempos ouço e vejo algo sobre José Geraldo Vieira. São enaltecimentos que partem de nomes de peso como os do crítico Otto Maria Carpeaux e de escritores consagrados como Érico Veríssimo, Jorge Amado e, por outro viés, de Olavo de Carvalho.
Fui então conferi-lo em um de seus maiores clássicos, “A mulher que fugiu de Sodoma”.
Ao cabo das 355 páginas, tive que me render a todos os elogios. José Geraldo Vieira é um romancista por excelência, aquele que sabe arquitetar um enredo com abrangência, inter-relações artísticas – a pintura, no caso −, personagens marcantes e entrelaçamento de mistérios que vão se desvendando no crescer do texto.
Muitas vezes deparamos com romances que não possuem a densidade que se extrai de “A mulher que fugiu de Sodoma”. Parecem monotemáticos ou delimitados, além de soarem como meros exercícios de linguagem. Já em José Geraldo Vieira, há detalhes que se notam, por exemplo, em escritores do porte de Thomas Mann e dos russos, a penetração nos sentimentos mais profundos da existência humana.
E tudo de forma absolutamente bela, ao utilizar linguagem elaborada na construção de palavras e frases, o que gera a necessária harmonia entre forma e conteúdo. Isento do chulo tantas vezes presente em outros romances, consegue retratar as dores e a miséria moral com estilo capaz de encantar o leitor.
Foi o próprio Oswald de Andrade − por sinal, tão irreverente − que escreveu, em artigo no antigo “Correio da Manhã”: “Terão os Estados Unidos um perito de alto voo, um civilizado que faz nascer entre nós a planta floral do humanismo de Thomas Mann?”
Em “A mulher que fugiu de Sodoma”, temos a história de um jovem casa que vive no Rio de Janeiro, Lúcia e Mário. Mário é um médico em início de carreira, que sucumbe ao irresistível vício dos jogos. Como qualquer dependente químico, tudo fazia para satisfazer as tentações, nem que tivesse que descumprir compromissos e aderir às desculpas, mentiras e trapaças.
Em razão disso, Lúcia, mesmo o amando, decide abandoná-lo, e resta a Mário o apoio de um de seus tios, homem de muitas posses, que, conhecedor dos vícios do sobrinho, decide bancá-lo durante alguns anos em Paris, a fim de ele possa aprimorar os estudos da Medicina e refazer a vida.
Enquanto na capital francesa, Mário continua, porém, oscilando entre os estudos e as tentações. Com cenários tão bem descritos, sentimo-nos no coração de Paris e passamos a viver os imbróglios em que ele acaba se metendo. É a oportunidade de apostar nas corridas de cavalos, com todas as consequências: dívidas, calotes em hotéis, o envolvimento com outra mulher e com parceiros dispostos a tramoias em nome do dinheiro fácil.
Nesse espaço de tempo, Lúcia passa a residir na casa de uma antiga colega de escola, Ana Maria, casada com o milionário Nuno Almada, pois fora contratada para ser professora particular da filha do casal, o que era comum naqueles anos da década de 1920. As preceptorias.
Entre o Rio de Janeiro e Paris, Vieira vai, portanto, narrando as circunstâncias que envolvem os dois protagonistas para transmitir os sentimentos mais íntimos e tormentosos de ambos. Grandes escritores nos fazem sempre navegar juntos nos fluxos de consciência dos personagens. Ficamos, assim, na expectativa pelo deslinde das trajetórias de Mário e Lúcia.
Quanto à simbologia do título, trata-se de uma interpretação de um dos quadros do pintor barroco Paul Rubens (1577-1640), o que retrata a fuga do personagem bíblico Ló e sua família da cidade de Sodoma, atingida pela promiscuidade ou devassidão.
Na analogia com a história relatada no “Gênesis 19”, cabe ao leitor interpretar o ato de Lúcia, que, a princípio, abandonara Mário em razão de seu doentio vício de jogos de azar. Mas o enredo parece aberto a outros ângulos. Interpretem-no.
“A mulher que fugiu de Sodoma representa mais um extraordinário romance em que afloram questões típicas de todos nós, como as que transitam não somente pelos males dos vícios, mas que penetram o terreno dos princípios morais e da tentativa de regeneração.
Aliás, é nos piores momentos, que surgem os atos de solidariedade. No percurso que conduz ao inferno existencial, é que costumam aparecer realmente as atitudes mais generosas, pois mesmo os sujeitos mais decaídos, conservam um mínimo de pureza e podem despertar a compaixão, como expresso no romance.
Conhecer a obra de José Geraldo Vieira é experiência do mais elevado alcance.
ALBERTO CALIXTO MATTAR FILHO escreve quinzenalmente, às quintas, nesta coluna (mattaralberto@terra.com.br)