6 de setembro de 2024
Foto: Reprodução
ALEXANDRE MARINO
Brasília, a cidade que me acolhe há quatro décadas, vive atualmente a pior seca de sua história. Na última segunda-feira, a umidade relativa do ar atingiu sete por cento, um índice nunca registrado. Na quarta-feira, resolvi enfrentar o clima hostil e fui para a rua ver os ipês brancos, que de repente floriram e deram à cidade esturricada um aspecto de neve. Quando isso acontece, o humor da população melhora. Motoristas vão mais devagar, admirando essas belas árvores; esquecem a pressa, estacionam por um momento para fotografá-las. As pessoas circulam entre os ipês e aspiram seu suave perfume, que as faz esquecer do insistente cheiro de fumaça. Fotografam, sorriem umas para as outras. A árvore oferece néctar às abelhas, borboletas e pássaros, e aos humanos a oportunidade de se redimir. Nada mais inspirador.
Algumas espécies de árvores se destacam na aridez de cidades brasileiras, como os ipês (roxo, amarelo, branco, rosa), os flamboyants e a cerejeira, nativa do Japão. Suas flores chamam a atenção pela beleza e até pelo perfume, apesar de efêmeras. Mas o cidadão brasileiro, de forma geral, não gosta de árvores. Ele apenas as suporta, quando não se sente prejudicado por elas. Um galho no meio do caminho, uma raiz que rompe o asfalto, folhas secas sobre um telhado ou a calçada são razões suficientes para que a árvore seja eliminada ou mutilada de tal forma que sua sobrevivência é prejudicada ou inviabilizada. O brasileiro gosta da sombra das árvores quando sente calor, mas passa a rejeitá-las sob chuva ou vento, por considerá-las uma ameaça.
De onde vem essa aversão dos brasileiros às árvores? Onze anos depois que os portugueses invadiram a terra brasileira (que ainda não tinha nome), um navio levou para Portugal 5 mil toras de pau-brasil, a árvore então abundante em todo o território que alguns anos depois foi batizado com seu nome. Durante um século, a intensa exploração deixou a espécie à beira da extinção, condição em que permanece até hoje. Esse espírito predatório nunca deixou de guiar a economia brasileira. A mineração destrói nossas terras, o uso abusivo de agrotóxicos envenena nossos alimentos, o agronegócio invade e desmata as florestas. Matas são queimadas para se transformar em pasto. Os grandes interesses econômicos estão acima dos interesses coletivos.
O pau-brasil era a árvore típica da Mata Atlântica, hoje reduzida a 12 por cento de sua área original. O país que sempre teve o privilégio de uma natureza exuberante continua devorando a si mesmo, com apetite incontrolável. A soja e o gado ocupam áreas onde existiam florestas, o garimpo ilegal destrói os rios da Amazônia, tudo favorecido pela exploração ilegal de madeira. O Pantanal e o cerrado estão em chamas, assim como a Amazônia, provocando uma seca inédita e desertificando o país. A crise de abastecimento já começou: todos os 62 municípios do estado do Amazonas estão em situação de emergência por falta de água. Minas Gerais prepara-se para entregar às mineradoras algumas áreas onde ficam alguns dos principais mananciais do estado, que abastecem grande número de cidades, inclusive a capital Belo Horizonte.
Estamos passando por um período de sufoco. A expressão é literal. Todo o Brasil queima, os hospitais estão cheios de pacientes com problemas respiratórios, a visibilidade fica reduzida em várias horas do dia, estradas são interditadas, ninguém sabe o que vai sobrar em meio às cinzas. Nessas alturas, não dá mais para duvidar que a maior parte desses incêndios que tomam conta do país tem origem criminosa, com planejamento e agenda. Mas o que pretendem esses incendiários, além de praticar terrorismo aos moldes do 8 de janeiro? Esperemos pelas respostas, se as investigações da Polícia Federal chegarem a bom termo.
O domínio do fogo pelos nossos ancestrais foi um dos passos mais importantes para a evolução humana. O uso desse elemento proporcionou aos antigos hominídeos iluminação para encontrar alimentos em locais escuros, aquecimento nos dias e noites frias, proteção contra predadores, cozimento de alimentos e ferramenta para a fabricação de objetos, como cerâmicas. Naqueles tempos, que os cientistas calculam em torno de 1,4 milhão de anos atrás, de acordo com a Enciclopédia Britânica, nossos ancestrais começaram a fazer a utilização controlada do fogo.
Havia nisso um sentido de solidariedade. Os hominídeos viviam em grupos e se protegiam uns aos outros. A ação de incendiar as áreas de florestas é o contrário do sentido das nossas origens, pois é um gesto de agressão e se baseia na perda do domínio do fogo. Além disso, os incêndios que se alastram sem controle destroem toda a vida que existe no caminho, vegetal e animal, e dificultam a regeneração da terra. Nós, humanos civilizados, nos desagregamos da natureza como se não fizéssemos parte dela, mas agora, até por uma questão de sobrevivência, teremos de fazer o percurso contrário.
É o que a sabedoria indígena nos ensina: toda a vida que existe no planeta importa, como parte indissociável de um organismo único. Os fungos, as abelhas, as árvores centenárias, os pássaros, os grandes mamíferos são criaturas que vivem dentro de uma grande rede entrelaçada e interdependente, da qual ainda fazem parte a terra, os rios, as montanhas. É pelo esquecimento dessa lei básica da natureza que estamos destruindo o clima do planeta e colocando em risco nossa sobrevivência.
ALEXANDRE MARINO, escritor e jornalista em Brasília/ DF, escreve quinzenalmente às sextas nesta coluna