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Revolta negra, medo branco

“O Haiti é aqui/o Haiti não é aqui”. Uma leitura livre deste belíssimo verso da melodia de Caetano Veloso poderia condensar o paradoxo vivido no Brasil sobre a revolução ocorrida naquele país no início do século 19: o temor dos brancos pelo seu impacto no Brasil e, por outro lado, a esperança de liberdade que brotou nos corações dos negros escravizados. 
A Revolução Haitiana (1791-1804) resultou no primeiro e único Estado-Nação oriundo de uma insurreição de escravos no mundo. Com essa revolução, o Haiti se tornou o primeiro país a abolir a escravatura e o segundo a se tornar independente nas Américas (depois dos EUA, em 1776). Inspirados pela Revolução Francesa (1789) e liderados por Toussaint L’Overture e Jean-Jacques Dessalines, os haitianos, além de abolir a escravidão, acabaram com o domínio colonial, enfrentaram as tropas de Napoleão Bonaparte enviadas para combatê-los e derrotaram militarmente três potências coloniais: Espanha, Inglaterra e França (¹). 
De acordo com alguns historiadores, as notícias sobre a Revolução Haitiana repercutiram no Brasil com reações contraditórias das principais classes sociais então existentes: os escravizados aumentaram a mobilização para melhorar suas condições materiais ou até para tentar mudar radicalmente sua situação socioeconômica, enquanto que as classes dominantes, por sua vez, aumentaram a repressão contra os escravizados que se revoltavam, tentando conjurar qualquer possibilidade de alteração do status quo.  
O fato é que ainda hoje se debate a influência da Revolução Haitiana em eventos cruciais da nossa história, como a Conjuração Baiana (a “revolta dos alfaiates” de 1798); a rebelião de escravizados ocorrida em Carrancas (Minas Gerais, 1833); a Revolta dos Malês (Salvador, Bahia, 1835), todas brutalmente reprimidas pelas forças da ordem escravocrata. Isso sem falar na Revolução Pernambucana (1817); na Confederação do Equador (1824), também em Pernambuco; e na Cabanagem no Grão-Pará (1835-1840).
Mas as fontes históricas disponíveis até agora não permitem um conhecimento mais acurado sobre a influência da Revolução Haitiana nas rebeliões de escravizados no Brasil. O que se conhece a respeito da inspiração dos “jacobinos negros” nessas revoltas do 2º Império são principalmente relatos dos brancos, de fontes às vezes ligadas à repressão desses movimentos. Um desses relatos, por exemplo, do início do século 19, dá conta que soldados negros foram vistos no Rio de Janeiro, o maior porto escravista do mundo, usando medalhões com a efígie de Dessalines.
Até agora, portanto, os estudos historiográficos puderam registrar mais o medo branco do que a esperança negra. O historiador americano Thomas H. Flory ressalta que esse medo se tornou mais palpável depois da revolta dos Malês. Ele observa que a expressão “haitianismo” virou uma justificativa ou um pretexto para um tratamento mais duro a ser dispensado aos escravizados. Para ele, o “haitinismo” foi mobilizado pelos latifundiários senhores de escravos e pelo Estado brasileiro para aumentar o controle e a disciplina sobre a força de trabalho. (³). 
O historiador Luiz Mott cita um documento que revela como a classe escravocrata brasileira manipulava o pavor de uma revolução negra para tentar restringir ainda mais as parcas liberdades políticas do país: 
“Todos os brasileiros, e, sobretudo os brancos, não percebem suficientemente que é tempo de se fechar a porta aos debates políticos, às discussões constitucionais? Se se continua a falar dos direitos dos homens de igualdade, terminar-se-á por pronunciar a palavra fatal: liberdade, palavra terrível e que tem muito mais força num país de escravos do que em qualquer outra parte. Então, toda a revolução acabará no Brasil com o levante dos escravos, que quebrando suas algemas, incendiarão as cidades, os campos e as plantações, massacrando os brancos, e fazendo deste magnífico império do Brasil uma deplorável réplica da brilhante colônia de São Domingos (⁴),
Na verdade, os grandes latifundiários que dominavam a economia agrário-exportadora do Brasil até 1930 não distinguiam as ameaças reais das potenciais ou imaginárias. “Quando a sobrevivência de toda uma ordem social estava em risco, não havia tempo para se medir o tamanho da ameaça, pois ela sempre seria a maior possível” (⁵). 
Estudos futuros talvez venham a esclarecer melhor os reais efeitos da Revolução Haitiana no Brasil, principalmente para sabermos em que medida ela inspirou as rebeliões de escravizados que abalaram o 2º Império e ajudaram a, finalmente, acabar com a escravidão no final do século 19. 
(¹) Marco Morel, A Revolução do Haiti e o Brasil escravista. (²) Idem. (³) Thomas H. Flory, Judge and jury in imperial Brazil, 1809-1871.   (⁴) Luís Mott, A revolução dos negros do Haiti e do Brasil.     (⁵) Luís Fernando de Souza Lima; Fernanda Mendes Lourenço; Giovanna Saturnino Oliveira; Sofia França Vieira; Fábio Luiz Rigueira Simão, Haitianismo e percepção da Revolução Haitiana na sociedade escravista brasileira do século XIX. 

CLÁUDIO CAMARGO é jornalista e sociólogo; trabalhou nos jornais Em Tempo e Companheiro (1977-1980); foi editor adjunto de Internacional da Folha de S. Paulo (1987-1993); editor de Internacional e editorialista da revista IstoÉ (1992-2009). É colaborador do Grupo Cotas, coletivo que escreve quinzenalmente, aos sábados, nesta coluna.
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