Opinião

Revoada de urubus

28 de junho de 2024

Foto: Reprodução

ALEXANDRE MARINO

 

Eles nos disseram para seguir em frente, e seguir em frente era apenas nos manter em movimento, porque não havia à frente um caminho, uma referência, uma encruzilhada, nada que oferecesse uma escolha. Apenas entulhos, pedras, dejetos, restos, era o que se via de um lado a outro, em qualquer direção que se olhasse. E seguimos. Seguimos sem direção e sem sentido. Nada havia nem mesmo no céu para nos orientar, porque não havia sol, não havia lua, não havia estrelas, não havia nuvens; ninguém sabia o que havia ou se havia alguma coisa, porque a fumaça encobria tudo, talvez nem fosse fumaça, talvez poeira, talvez gases saídos das entranhas da terra, depois das explosões.

A ordem era atravessar o apoastro. Não perguntamos nada, porque era proibido perguntar. E seguimos. Aos tropeços, avançávamos, ainda que fosse difícil saber quanto, porque tudo era uma imensidão indefinida, não se pode nem dizer que havia um horizonte. O panorama à frente só se alterava quando havia uma explosão, ou quando começava a ventar forte e a formar-se um redemoinho, e subia a poeira, todo tipo de resíduos, destroços, coisas nojentas, e mesmo assim seguíamos em frente.

De repente, um dos companheiros caiu. Sua cabeça se encaixou entre duas pedras, o corpo pareceu se dissolver sobre os dejetos no solo e lá ficou. Para ser mais preciso devo dizer que não éramos companheiros, não éramos nada. Nem mesmo esperávamos nos ajudar, porque não havia como ajudar, não era possível ajudar a ninguém porque não estávamos cumprindo meta alguma, nem em busca de sucesso, destino ou salvação. Éramos passantes, passávamos de um lugar a outro, ainda que não houvesse distinção entre um lugar e outro, e não caminhávamos por prazer ou tentando chegar a algum lugar, caminhávamos porque mais desesperador seria parar. Como urubus flanando em círculos no céu. Sim, éramos uma revoada de urubus.

A superfície estava coberta por destroços. Havia restos humanos de repetidas guerras, os que morreram pelas bombas, ou de fome, ou de sede, ou de frustração por terem nascido. Havia ruínas do que um dia foram obras criadas pela humanidade, ruínas de edificações, casas, prédios, pontes, monumentos, estátuas. Havia enormes crateras por onde se viam os ossos da Terra, despojada de sua carne e de suas riquezas. Automóveis… Ah, os automóveis, esses fetiches humanos. Era possível visualizar, até os limites do alcance dos olhos, uma aglomeração sem fim de automóveis. Eram automóveis mas não se moviam. Milhares, milhões, bilhões de automóveis estáticos sobre o solo.

Os caminhantes seguiam em número cada vez maior. Tinham fome, sede e cansaço, mas não havia alimento, água ou abrigo para todos. Então muitos morriam e se faziam de alimentos para outros como nós. Começaram a surgir alguns líderes, que formavam grupos e esses grupos cresciam, à medida que se deslocavam do nada para o nada pela superfície árida. Atravessavam rios secos, florestas fossilizadas, ruínas do que algum dia foi uma civilização, criada e sustentada pela mesma inteligência que a levou do ápice à destruição. Aquelas criaturas que vagavam sem saber aonde ir tinham corpos e cérebros semelhantes aos daquelas que projetaram bombas e mísseis, construíram máquinas e sistemas complexos para tornar a vida mais fácil, mas também inventaram divindades, valores e regras para controlar a vida de todos. E agora seus corpos se deslocavam para lugar algum e seus cérebros não serviam para nada.

Em algum tempo indefinido – sim, era impossível definir o tempo, porque não havia dia ou noite – um grupo de caminhantes se deparou com um estranho objeto semienterrado na areia. O que poderia haver de estranho naquele mundo? Um objeto de formato aparentemente circular, de uma cor amarela brilhante, a única coisa que brilhava naquela imensidão. Alguns caminhantes começaram a desenterrá-lo, depois mais alguns e depois muitos. E depois de muito trabalho tomou forma um gigantesco sino, identificado pelos anciãos do grupo. Mas não era um sino comum, como se viam nas igrejas, era um sino de cor reluzente. Foi quando alguns murmúrios começaram a se ouvir, é um sino de ouro, só pode ser ouro! E pela primeira vez os caminhantes ensaiaram algum gesto e alguma emoção.

Os caminhantes se aninharam ao redor do sino. Sua cor, sua luz, sua forma, tudo parecia dar algum conforto àqueles miseráveis. E a aglomeração chamou a atenção de outros grupos de caminhantes que surgiam de todas as direções. E aqueles trapos humanos que se moviam em silêncio começaram a emitir vozes. Primeiro simples murmúrios, depois sons que pretendiam algum significado. A aglomeração cresceu, formou-se uma enorme multidão ao redor do objeto.

Mas o sino de ouro não fornecia alimentos nem água, nem mesmo abrigo. E os trapos voltaram a ser trapos. Um por um, os caminhantes definhavam, caíam, morriam, enquanto outros caminhantes chegavam. E nós, que flanávamos em círculos no céu, descíamos em espiral e pousávamos nos pontos mais altos do sino, à espera do alimento que se oferecia.

ALEXANDRE MARINO, escritor e jornalista em Brasília/ DF, escreve quinzenalmente às sextas nesta coluna