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Quintais e arranha-céus

Foto: Reprodução

ALEXANDRE MARINO

Nossas casas são elemento marcante em nossa memória, porque representam o primeiro pedaço do mundo com que tomamos contato. São a extensão dos primeiros corpos humanos que nos acolheram quando aqui aportamos. Entre suas paredes tomamos consciência de nós mesmos e da realidade ao redor. A casa é referência, abrigo e um pedaço de nossas vidas. Assim como o quintal, a mesa de jantar, o quarto onde dormimos, um canto secreto que adotamos como nosso.

Cada um de nós é um poço de mistérios, e as casas também o são. Foi assim que um amigo se referiu à casa onde passei minha infância, ao saber que já não era mais propriedade da família e, portanto, eu não teria mais o direito nato de frequentar suas dependências: “Aquela casa misteriosa…”, disse, lamentando-se. Sim, muitas casas escondem mistérios, que não se revelam ainda que eu possa entrar e investigá-las. Porque elas guardam as almas impenetráveis de seus moradores, atuais ou antigos, vivos ou mortos. As casas, como extensão dos que lá viveram, são fonte de inspiração para inúmeras obras literárias.

Nas ruas de Passos, onde nasci e vivi até os 17 anos, eu gostava de caminhar e observar suas casas, suas arquiteturas, as marcas registradas que eram as de seus donos e familiares. Sempre que visito a cidade ainda faço isso, e é triste perceber que Passos vai perdendo a identidade, ao apagar sua memória e os sinais vitais de gerações que a construíram. Há um surto destruidor que tem como vítima mais recente a tradicional residência de Francisco Avelino Maia, um dos casarões mais conhecidos da área central da cidade.

Posto abaixo, em seu lugar será erguido um edifício de 90 metros de altura e 26 andares, com 38 apartamentos, ironicamente batizado de “Comendador”, como se assim pudesse guardar a memória do empresário que ali viveu. Cá do meu canto, eu me pergunto: por que Passos precisa de um desvario desses? Na verdade, não precisa. Passos contraiu o mesmo vírus que ataca a maioria das grandes e médias cidades do país e causa a doença da verticalização, trazendo consigo uma série de sequelas, como a concentração populacional, caos no trânsito, perda de identidade e até interferências no clima.

Uma matéria do site Observo.com.br informa que o projeto arquitetônico do “Comendador” é do mesmo escritório que projeta algumas das torres do Balneário Camboriú, de Santa Catarina. Lá se encontram sete dos 10 prédios mais altos do Brasil, entre eles o Yachthouse, de 80 andares, onde o jogador Neymar, da seleção brasileira, comprou uma cobertura. São verdadeiras aberrações arquitetônicas, ostentações de riqueza e poder, alinhadas ao longo da orla. Neymar pagou 60 milhões de reais, mas terá que comprar outro, se quiser um apartamento no prédio mais alto do Brasil. Já foi anunciado para breve o lançamento daquele que será o mais alto do mundo, com 509 metros e 154 andares. Imagino que quem visita a cidade prefere ver arranha-céus que ir à praia, onde na maior parte do dia não bate o sol…

Por que insistimos em nos apertar em cidades desordenadas, “dentro de casas amontoadas sobre uma terra estéril, vivendo uns sobre os outros e correndo sem parar”, como bem descreveu o xamã yanomami Davi Kopenawa, no indispensável livro “A queda do céu”? A verticalização é um dos sinais do fracasso da política urbana brasileira, assim como a favelização, o trânsito caótico, a violência. É uma tendência nacional, com propósito claramente elitista. Grandes empreiteiras lucram vendendo falsas vantagens de prédios cada vez mais altos, que desumanizam as cidades, destroem o convívio humano e promovem a ilusão de segurança a partir do isolamento. E não resolvem um de nossos mais graves problemas sociais, o déficit de moradia, que gira em torno de 6 milhões de residências, segundo pesquisa da Fundação João Pinheiro.

Vivendo em Brasília, vejo que o modelo urbanístico criado por Lúcio Costa também falhou. Os edifícios horizontais, de não mais de seis andares sobre pilotis livres onde o ar circula, cercados por áreas verdes onde a vizinhança convive e as crianças brincam em paz, simbolizam uma utopia. O projeto fracassou por falta de uma política de transporte público e pela desigualdade social, problemas crônicos nacionais. Mas o modelo poderia ter inspirado outras cidades, não fosse a ganância dos empresários e a incompetência e corrupção da classe política.

Em Passos, privilegiadas famílias vão adquirir apartamentos no edifício Comendador e se deslumbrarão com a vista de seus apartamentos, mas suas crianças não terão quintais arborizados onde brincar com seus bichos de estimação ou criar mundos de fantasia. A cada manhã, será um pouco difícil tirar o carro dos seis andares de garagem e chegar à rua, já lotada de outros carros. Ficará a ilusão de que o progresso traz males inevitáveis.

Há vários outros empreendimentos parecidos em Passos, já prontos ou anunciados para breve. Não são belos. São curiosos. Um deles, em construção na avenida Juca Stockler, lembra os antigos prédios coletivos da União Soviética. Obviamente, nada a ver com a bela cidade da minha adolescência, da minha infância, dos meus antepassados. A cada casarão histórico demolido, Passos perde sua identidade e rejeita sua história, tornando-se uma cidade sem cara, igual a tantas outras.

ALEXANDRE MARINO, escritor e jornalista em Brasília/ DF, escreve quinzenalmente às sextas nesta coluna

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