ROBERTO DAMATTA
Nasci no país do carnaval que já chegou com força. Festa das licenças fantasiosas. Mamãe, pianista, descrevia musicalmente os bailes de carnaval do Teatro Amazonas, da saudosa Manaus de sua mocidade. Ela salientava a música de carnaval e as fantasias – esta possibilidade de sair de si mesmo facultada como um direito no governo de Momo.
“Seu tio Marcelo”, dizia mamãe, “fez sucesso fantasiado de filho do xeque, imitando com perfeição o ator Rodolfo Valentino!”. Anos depois, fiz o mesmo, quando me fantasiei de pirata e marinheiro. Soa ridículo, mas até hoje usamos dessa licença carnavalesca de “virar” outra pessoa num sistema no qual a maioria nasce e morre – rico ou pobre, empregado ou patrão, povo ou político – do mesmo jeito!
Pode-se, então, perguntar com ingenuidade antropológica: não seria o poderoso impulso de “virar” um outro – e sobretudo um contrário – o fator que mais concorre para fabricar o carnaval?
As fantasias femininas são ainda mais reveladoras. As mulheres, policiadas por suas famílias e maridos, podiam vestir-se e desvestir-se como havaianas e odaliscas, tal como hoje elas surgem como sambistas – desfilando como rainhas de suas escolas de samba. E os homens, eis um ponto cego, podiam romper com o tabu e experimentar ser mulher ao menos na fantasia.
“Até hoje usamos a licença carnavalesca de ‘virar’ outra pessoa num sistema no qual a maioria nasce e morre do mesmo jeito.”
“Até hoje usamos a licença carnavalesca de ‘virar’ outra pessoa num sistema no qual a maioria nasce e morre do mesmo jeito.” Foto: Alex Silva/Estadão
No carnaval, o canto substitui o sermão, o discurso e a admoestação própria dos genitores e dos “caga-regra” que reiteradamente elegemos para nos redimir. No carnaval, a censura é trocada pelo direito de cantar o que e quem se quiser.
Há, nesse ritual de reversão, um voluntarismo legítimo e risonho. Desaparece o “você sabe com quem está falando?” e surge o “advinha quem eu sou?” do mascarado que abusa de sua paciência, pois como não saber quem somos e falamos nesse nosso universo inconscientemente escravocrata? Por isso, as classes dominantes e os que sabem tudo odeiam o carnaval que, dizem, aliena o povo…
Traço curioso: o carnaval inibe a comida na sociedade dos banquetes. Nele, vale o “espírito” – o nobre, edificante e líquido álcool. Tal como nas batalhas de esguichos do Entrudo, nele, os grupos polarizados em senhores e escravos batalhavam com água! Liquidificava-se a hierarquia, do mesmo modo que, nos tempos de democracia limitada pelo legalismo, as serpentinas criavam elos de papel colorido…
Na montagem desse alívio de confete da opressão das castas nacionais, a ausência de comer e de mesas é significativa. Em contraste radical com outras “festas”, o carnaval suprime a comida e, com isso, liquida centros. Sem as mesas postas que congregam e excluem, o mundo fragmenta-se e surge uma igualdade pulverizada, mas benfazeja, cujo maior símbolo é esse confete que até hoje permeia nossas esperanças de transformação.
ROBERTO AUGUSTO DAMATTA é um antropólogo, conferencista, filósofo, consultor, colunista de jornal e produtor brasileiro de TV