PATRICIA PEREIRA
Quando criança diziam que eu era pasmada, do tipo que demorava a dar minha opinião. Surgia um assunto na roda e eu ficava um tempão ruminando para conseguir me expressar. Alguns achavam que era pasmaceira, mas não era. Sempre tive uma cabeça parecida com aquela caixa de lenços mágicos amarrados uns aos outros. Puxava um lenço, vinha outro, e mais um e outros tantos. No caso, os lenços eram os pensamentos. Não conseguia responder de forma imediata a uma pergunta banal sobre tiara de cabelo. No caminho entre a pergunta e a resposta, minha mente me levava para uma plantação de alcachofras.
Na infância aceitei o rótulo de pasmada. Ficava muito pensativa com as crianças pobres soltas nas ruas, com a morte de bebês nas guerras, com o menino preto que morreu sem atendimento médico e com as feridas abertas dos leprosos mendigando na nossa porta. Eu não queria que o mundo fosse assim.
Acho que, por isso, interessei-me muito cedo pelas questões sociais e por política. Quando digo política, falo da arte de buscar o bem comum e não dessa politicagem da atualidade em que cada um almeja o interesse pessoal.
Minha relação com a política começou na maternidade. Nasci aos quinze minutos do dia dezesseis de novembro. Na ocasião, as eleições aconteciam no dia 15 daquele mês. Lembrem-se que o calendário atual com eleições no mês de outubro foi adotado após a Constituição Federal de 1988, e eu nasci antes desse ano. Numa euforia sem medida, meu avô materno, sugeriu o meu nome: “Vitória Arenina”. Assim celebraria tanto a conquista certa de seu candidato quanto o partido político ao qual era filiado. Papai, rival de vovô na política, não permitiu. Mas como era conciliador, sugeriu Patrícia, ou seja, quem é da mesma Pátria, aquela que tem grande afeto por seus patrícios. O nome pacificou por um tempo a polarização familiar. Até que numa certa eleição municipal, a harmonia conquistada desandou.
No dia 15 de novembro daquele ano combinei um piquenique com os colegas da igreja. Passamos cedinho pela Praça do Rosário e quem estava lá todo alvoroçado aguardando o início da votação? Meu avô. Tomei a benção dele. Como ele e papai eram rivais nas eleições, fiz um comentário impertinente. Como resposta levei um “tapa na cara”. Mamãe jogou a culpa nos nervos de vovô e ainda me responsabilizou dizendo: “Foi mexer com quem estava quieto, deu no que deu”.
Meus queridos, foi o primeiro de muitos tapas que ainda viriam por causa da política.
Na adolescência, dei um nome bonito para minha pasmaceira. Comecei a me autodefinir reflexiva. Continuava inquieta com as desordens na sociedade e irritada com o descaso dos políticos e suas decisões. Vivenciei o processo de redemocratização do país e acreditei que meu voto seria eficaz para fazer um país mais justo. Mais um tapa na cara. Tudo na mesma: corrupção, falta de vergonha e crise ética.
Agora, recentemente, após a elucidação de mais uma etapa do assassinato da vereadora Marielle e de seu motorista Anderson Gomes, levei não só um, mas vários tapas na cara. Eu tinha uma vaga ideia, mas a série da Globoplay “Vale o que está escrito” e o livro “Milicianos” de Rafael Soares me descortinaram o submundo do jogo do bicho, das milícias, do tráfico de drogas, dos extermínios por policiais e como isso tudo está enraizado com o Poder Público do Estado do Rio de Janeiro.
Quantos tabefes! Nem posso imaginar onde isso vai chegar.
Gostaria de resgatar minha crença na democracia. Voltar a acreditar que a única arma pacífica e legítima para mudar nossa realidade é o voto consciente e lúcido.
Chega de tapas na cara.
PATRÍCIA LOPES PEREIRA SANTOS, graduada em odontologia (PUCMG) e direito (Fadipa), mestre em Políticas Públicas e Desenvolvimento Regional (Unifacef- Franca) e Especialista em Direito Público (Faculdade Newton de Paiva), é servidora pública do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. E-mail: acitripa70@ gmail.com