MARLI GONÇALVES
Liberação de jogos de azar no Brasil? Era o que faltava, tantas coisas fundamentais para serem analisadas e votadas, e em meio a discussões verdadeiramente cruciais para mulheres e jovens, o Senado aprova, com a maior cara de pau, o que só pode criar muitos problemas para as famílias, que tanto dizem “proteger”. Jogos de azar. Quer que eu repita? Azar. E muito.
O país atônito, e lá vem essa pancada, como se estivéssemos avidamente procurando ainda mais problemas. Desse jeito, azar, vamos acabar achando mesmo, e dos bons: mais vícios, mais famílias destruídas por dívidas, violência, corrupção e saúde mental abalada. Tudo com a velha argumentação de arrecadação, que dizem será da ordem de R$ 22 bilhões anuais, mas não informam quanto gastarão com os problemas que serão causados. Não estão aguentando nem com eles, como vão fiscalizar o que já não fiscalizam? O jogo do bicho, aliás, já vive em todas as esquinas, o zoológico inteiro em cartazes com sinalização. As tais bets já causam severos endividamentos. Some-se agora a tudo isso a criação de cassinos, novamente os bingos e aquelas casas tristes repletas de aposentados solitários, os jogos online a dinheiro, as apostas em corridas de cavalo. Não duvide se a qualquer hora – na calada da noite preta e obscura deste Congresso – legalizarem as rinhas de galos, as corridas de cães, mais rodeios e vaquejadas mortais.
O relator, senador Irajá (PSD-TO), diz que é uma oportunidade de renda e empregos e uma forma de trazer para a legalidade atividades à margem da lei. Discutir a legalização das drogas, do aborto, não pode. Mas os tais jogos de azar – e vou repetir, azar – pode? O que esses seres dirigidos por seus interesses em tempo de eleições estão fazendo de nosso país? Até quando? Acham, acaso, que nesse Brasil paradisíaco invejado pelo mundo é preciso isso para atrair turismo, este sim um setor criador de riquezas e empregos? Quem precisa de jogos de azar?
Tenho uma “amiga” – digamos assim, no momento em que todos temos de manter o anonimato porque anda bem difícil o entendimento – que recordou uma história terrível e marcante que viveu na infância. Tinha 8, 9 anos de idade, no máximo. As coisas em casa entre o pai e a mãe não estavam nada bem, as brigas se sucediam, e um dos temas era justamente o endividamento, o apertado orçamento doméstico sendo consumido no carteado. Naquele dia que ela nunca esqueceu, inclusive, estavam de férias no pequeno apartamento no litoral, em Santos, até ele já comprometido porque o pai não tinha o que é necessário a se contrapor ao azar, a chamada e rara sorte. Por conta disso, cada vez bebia mais, se tornava mais irascível, tentando, tentando – quanto mais se perde, mais se tenta jogar para tentar ganhar. Mais e mais se afunda.
Naquela tarde, recorda, o pai chegou, vindo de São Paulo para o fim de semana – tinha perdido mais uma vez, e bastante. Chegou bravo, bebeu, bebeu, brigou, bebeu mais, deitou no sofá e dormiu como se ao acordar pudesse começar tudo de novo. Até hoje ela lembra de ter ido até a cozinha, aberto a geladeira, e pego uma daquelas garrafas de vidro com umas ranhuras que enchíamos de água, lembram? – ainda tem para vender – e que a gente pegava e bebia escondido na boca da garrafa, escondido atrás da porta aberta. Não teve dúvidas: pegou uma, bem cheia, bem gelada, a de tampa vermelha, recorda o detalhe. Destampou. Foi até a sala e a despejou na cabeça do pai. A forma que encontrou para acordá-lo, não só do cochilo, mas para a vida, para o que sentia.
Resultado: nunca mais seu pai jogou e mantiveram até o fim de sua longeva vida uma parceria inabalável e sincera, mesmo quando um ou outro se metiam em encrencas. Você também deve conhecer muitos casos, e até de horror, relacionados ao tema.
Lembrei disso tudo imaginando porque é que exatamente foram desenterrar agora uma lei de 1946, há 78 anos, e que todas as vezes que alteraram, como nos bingos, nas máquinas viciadas de bares, favoreceu só a organizações criminosas que sempre buscam novas fontes de renda e para lavagem de dinheiro, a morte, atentados e perseguição a quem tentou policiá-las ou denunciar os clandestinos. Quais interesses reais estão envolvidos? O que andam tramando? A quem querem agradar? Só não me digam que é para o bem do país. Não me digam que é para captação de recursos, nem que desta vez as atividades serão fiscalizadas, porque nem risadas conseguem mais. Quem já viveu sabe no que essa roleta vai dar.
Azar. A palavra que precisa ser dita. Azar o nosso, com gente assim fazendo e desfazendo leis.
MARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também, pela Editora Contexto