POR ALEXANDRE MARINO
12 de fevereiro de 2021
Uma fotografia que encontrei por acaso na internet se fixou na minha memória por alguma razão misteriosa, provocando reflexões sobre o poder da imagem de desencadear conexões em nosso cérebro. Trata-se de uma cena que nada tem de especial, a não ser por alguns pequenos detalhes e especialmente a forma como foi composta. Conversar e escrever sobre ela é a melhor forma de penetrar em sua essência.
Nestes tempos de overdose de imagens, quando o outrora banal telefone se transformou numa pequena máquina capaz de produzir fotos e vídeos de alta qualidade, sem qualquer complicação, e está nas mãos de quase todas as pessoas, sigo um caminho inusitado. Escrevo a respeito de uma fotografia sem mostrá-la, na esperança de que o leitor, a partir da minha descrição, consiga enxergá-la por força de sua imaginação. A convivência cotidiana com uma avalanche de imagens torna essa missão um pouco difícil, mas não custa tentar.
A fotografia é de autoria do francês Blaise Arnold. Formado na escola de artes gráficas de Estienne, em Paris, prestou serviço durante 35 anos para revistas e agências de publicidade multinacionais. Grande parte de seu trabalho pessoal é inspirado em cenas e personagens dos anos 1950, época que o encanta, segundo ele próprio. Não por acaso, suas fotos lembram os filmes de Alfred Hitchcock ou a pintura do artista plástico norte-americano Edward Hopper.
O título da foto de que falamos é Carol Ann Fewell, a jovem mulher que aparece em primeiro plano, não se sabe se uma personagem real ou fictícia. A foto mostra um cenário comum nos Estados Unidos. No fundo, veem-se apartamentos de um motel, aqueles hotéis de estrada muito comuns naquele país, que nada têm a ver com os motéis brasileiros, destinados a encontros íntimos, geralmente rápidos. Nos Estados Unidos, esses estabelecimentos recebem desde viajantes solitários até famílias inteiras. Compõem-se de apartamentos térreos, um ao lado do outro. Percebe-se que o motel da foto está localizado numa região árida e desértica, e provavelmente não há qualquer cidade próxima.
A mulher está em primeiro plano, no terço esquerdo da foto, encostada numa parede, ao lado de um telefone público. Ela segura o fone na mão esquerda e fita o fotógrafo com um olhar desolado, que transmite um sentimento misto de tristeza e impotência. Atrás dela, no centro da foto, vê-se um automóvel típico dos anos 50, com a porta esquerda aberta, como se ela tivesse parado ali às pressas para telefonar. A fotografia tem cores pastéis, quase em preto-e-branco, não fosse o verde do carro, da blusa e dos olhos da jovem, em diferentes tons. Ao fundo, completando o cenário, um casal prepara-se para entrar em outro carro, estacionado ao lado do último apartamento.
O mais inusitado é a forma como a foto foi feita. Numa entrevista ao site Flickr, Arnold conta que fotografou o motel na Califórnia em 2015, o carro verde na França e a modelo em seu estúdio, em Paris, em 2017, com câmeras diferentes. Depois, finalizou com o programa de edição de imagens Photoshop. Arnold, como em outras fotos, dá um tratamento à imagem que parece fazer o caminho inverso do hiper-realismo, corrente de pintura surgida nos Estados Unidos que, inspirada na fotografia, busca uma reprodução minuciosa do real. Suas imagens parecem pinturas que imitam a fotografia.
É interessante perceber que tudo pode ser expressão artística. Arnold diz: “Esta foto representa tudo que amo: estética, mistério e emoção.” Com uma imagem, ele tenta contar uma história, que o espectador completará em sua imaginação – e mais ainda o leitor que, sem ver a foto, lê um texto sobre a foto. Da mesma forma que a imagem estática, um texto descritivo é apenas um estímulo à nossa fantasia. A partir daí, a história que criamos a partir daquela imagem entranha-se em nossa memória. Ou, no caso do leitor, a própria imagem criada.
Para reproduzir cenas dos anos 50, Blaise Arnold utiliza ferramentas típicas dos tempos atuais, o computador e programas de edição. Na foto em questão, é perceptível que a cena descrita é coisa do passado, tanto pelo carro quanto pelo telefone público. Só o rosto da jovem é atemporal, porque seres humanos jamais deixarão de transmitir seus sentimentos pelo olhar.
ALEXANDRE MARINO, escritor e jornalista em Brasília/DF, escreve quinzenalmente às sextas nesta coluna