22 de junho de 2023
ALBERTO CALIXTO MATTAR FILHO
No fim de março, assisti a uma bela entrevista do escritor Milton Hatoum ao Pedro Bial. Em trinta e poucos minutos, Hatoum me remeteu não só a duas de suas obras que li há anos, mas a opiniões que venho tentando apresentar em meus textos cá na coluna.
A literatura como expressão da complexidade da vida, a literatura desprovida de vieses políticos, a literatura como transmissão das experiências humanas, a literatura que não oferece respostas definitivas, mas sugestões e liberdade ao leitor para pensar por si próprio. A literatura que nos escancara nossos labirintos de prazer e dor, esses inevitáveis paradoxos a que estamos sujeitos.
Num mundo em que inúmeros aderem a fanatismos estúpidos, ideias repetitivas e paixões ideológicas, a literatura se transforma em uma porta de saída para tantos conflitos que se esvaem ao sabor dos ventos.
A literatura amplia a compreensão dos problemas, fortalece a capacidade linguística, impulsiona o pensamento e pode ser um antídoto contra o tédio que a existência costuma nos impor em muitos momentos. Talvez, um alívio para a ignorância, para o supérfluo, para os meros interesses de ocasião, para as vaidades sem lastro.
Milton Hatoum, este grande escritor brasileiro, embora tenha vivido e estudado em Brasília e São Paulo, nasceu em Manaus em 1952 e ministrou aulas de literatura na Universidade Federal do Amazonas e na Universidade da Califórnia, além de ter publicado romances, contos, artigos na imprensa e traduções.
Seus livros mais conhecidos são quatro: “Relato de um certo Oriente”, “Dois Irmãos”, “Cinzas do Norte” e “Órfãos do Eldorado”. Os dois primeiros foram vencedores do prêmio Jabuti de melhor romance nacional e também lançados nos Estados Unidos, no Líbano e em mais sete países da Europa. “Cinzas do Norte”, o terceiro, recebeu vários elogios da crítica.
Apesar de reconhecer a importância dos prêmios oficiais, observo que ele diz algo absolutamente verdadeiro para quem exerce o ofício de escrever: o maior reconhecimento está no leitor, esse sujeito muitas vezes oculto e essencial para quem se expõe pelas palavras escritas.
Segundo o norte-americano Paul Auster, “a relação mais íntima possível entre dois estranhos”. Inteligente raciocínio.
O conjunto de sua obra enfoca bastante a Manaus de décadas atrás, mas com perspectivas que transcendem a linha do tempo, justo por trazer personagens e enredos intensos em dramas típicos da condição humana em quaisquer circunstâncias.
Como disse no início, cheguei a ler dois de seus romances: “Cinzas do Norte” e “Dois irmãos”. Em ambos, percebi tais características. Sob refinado estilo, ali estão o amor, as angústias, as incertezas e as esperanças que carregamos conosco perante um oceano de obstáculos.
No decorrer das páginas, há descobertas que se fazem aos poucos. Estamos diante de alguém que sabe narrar histórias. A cada capítulo, novos fatos vão nos permitindo vislumbrar os desfechos.
Aliás, Milton ressalta que a ascendência libanesa – em razão das várias histórias contadas pelo avô −, a vida dos ribeirinhos e a constante presença dos imigrantes por Manaus lhe permitiram ampliar as experiências e a imaginação. Sim, os integrantes do mundo árabe costumam ser fartos em casos, memórias. E a presença de povos de diferentes origens estimula o olhar e os textos de um grande escritor.
Em minha estrada pelo universo da literatura, tenho procurado ler os brasileiros atuais. Em 2021, me dediquei a uma obra de grande repercussão, “Torto arado”, de Itamar Vieira Júnior. Logo em seguida, foi a vez de “Tudo é rio”, um sucesso de Carla Madeira, e “Uma tristeza infinita”, de Antônio Xerxenesky.
Ainda que mereçam os louvores da crítica, todos me trouxeram Milton Hatoum à memória. Não por semelhanças ou desejo de comparações. Mas ele me parece superior aos outros.
A propósito, bom lembrar que “Dois irmãos” foi adaptado para uma minissérie na Globo em 2016. Suas obras, em geral, têm sido transpostas para outras plataformas. “O relato de um certo oriente”, por exemplo, será adaptado para o cinema.
Ao encerrar a entrevista, disse que, embora sofra hiatos até extensos para escrever romances, jamais deixa de ler. “Vivo mais como leitor”. Que bom! Precisamos de mais leitores sempre. O Brasil precisa. Passos precisa.
A frase de Milton Hatoum apenas confirma o que já se sabe: a leitura antecede a escrita e lhe dá todo o suporte. Binômio inseparável.
ALBERTO CALIXTO MATTAR FILHO escreve quinzenalmente, às quintas, nesta coluna (mattaralberto@terr.com.br)