ALEXANDRE MARINO
A magia das teclas
Às vezes paro diante de uma de nossas estantes de livros para observar a máquina de escrever, hoje aposentada mas ainda em plena forma, que se exibe ao lado de obras sobre Rugendas e Debret e um volume precioso de fotografias de Sebastião Salgado, “Gênesis”.
A estante abriga alguns livros de arte, que não cabem nas estantes convencionais, e a máquina de escrever não faz feio em tão imponente companhia. É uma Olivetti Studio 44, que ganhei de minha mãe ainda na adolescência, e que lá pelos idos de 1973 chegou a ser usada para datilografar os estênceis da revista “Protótipo”, impressa em mimeógrafo a tinta, que veiculava a incipiente literatura que fazíamos em Passos.
A Olivetti chegou a minhas mãos depois que concluí o curso de Datilografia administrado pela Lurdinha Vasconcelos, prima de minha mãe, e ganhei um certificado com louvor. Eu me tornara um exímio datilógrafo, que seguia ao pé da letra as regras ensinadas no curso, e usava nove dedos para transpor um texto manuscrito para o papel chamex, com velocidade cada vez maior. Até hoje, ao digitar no computador, sigo aquelas regras, e somente o polegar da mão direita não participa do batuque, observador solitário do texto que surge, agora, na tela. Olhar para o teclado, nem pensar.
O curso funcionava numa pequena sala no sobrado de Tia Badica, mãe da Lurdinha. Tinha quatro ou cinco mesas, cada uma com uma máquina de escrever da marca Underwood e uma apostila com orientações. Diante de um quadro com o desenho do teclado e as indicações de onde colocar os dedos, sem olhar para a máquina, repetíamos incansavelmente os exercícios: asdfg, qwert, poiuy, çlkjh, e assim por diante.
O contato com as teclas era apenas tátil, pois uma chapa de metal nos impedia de vê-las.
Antes da Olivetti, havia duas máquinas de escrever em minha casa, ambas Remington. Uma que naquela ocasião já era bem antiga, onde eu praticava os exercícios do curso, e uma semiportátil, bonita e macia, que meu pai usava para escrever cartas e fazer pedidos para o Bazar Magom. Foi na Remington velha que ele datilografou as mensagens que recebia por código morse, como radiotelegrafista, até se aposentar. A semiportátil veio depois, e meu pai tinha tanto ciúme dela que minha mãe resolveu me presentear com a Olivetti.
Minha Olivetti Studio 44 foi minha companheira em Passos, Belo Horizonte e Brasília. Nela datilografei trabalhos de escola, poemas, contos, recados, cartas, textos jornalísticos e meus primeiros livros, até que, no início dos anos 1990, comprei um computador, equipamento que já começava a ser usado por alguns jornais. Antes dos computadores, as redações tinham uma sonoridade musical, graças às dezenas de máquinas de escrever onde nasciam as reportagens do dia seguinte. Depois, veio um silêncio asséptico e incômodo.
No meu primeiro dia de trabalho na sucursal do Jornal do Brasil, em Brasília, em 1985, fui advertido de que poderia usar qualquer uma das máquinas de escrever sobre as mesas, menos “aquela”, que era privativa do Valfrânio. As redações eram espaços democráticos, mas o Valfrânio era um veterano brilhante e mal-humorado, o que não o impedia de ser uma pessoa muito querida pelos colegas. Cobria economia, que eu discretamente supunha ser a fonte de seu mau humor.
As máquinas de escrever, como quase todas as máquinas, vão pegando algumas manias do dono e acabam se personalizando. Eu também tinha minhas máquinas preferidas nas redações, que cumpriam no ambiente de trabalho a mesma tarefa que a Olivetti em casa: me ajudavam a pensar. Ao colocar a lauda e girar o rolo, abria-se um horizonte. Uma história pode ser contada de infinitas maneiras, mas deve-se evitar fazê-lo de maneira óbvia ou comum.
Seres humanos, assim como outros seres da Natureza, são criaturas complexas, com cérebro, corpo e alma, e é desses universos pouco conhecidos que nascem todas as histórias. Era assim que eu pensava, enquanto escarafunchava os subterrâneos dos mundos que explorava – e o meu próprio.
Fosse um poema ou uma matéria para o jornal, o que era gravado no papel era fruto de uma energia que circulava entre meu cérebro, meu coração, minhas emoções, meus dedos, as teclas, até tomar forma de texto. A máquina de escrever era parte desse circuito. Depois o computador, que muita gente já troca pelos smartfones, assumiu esse papel de promover um encontro entre meu olhar, minha leitura do mundo e os circuitos eletrônicos que um processo complexo há de transformar em texto impresso. Ou, para quem preferir, em texto legível na tela, um objeto imaterial e não palpável. Mas tudo bem: no fim das contas, o corpo é matéria mas a vida é algo abstrato como uma energia sem fim e sem começo.
ALEXANDRE MARINO, escritor e jornalista em Brasília/DF, escreve quinzenalmente às sextas nesta coluna