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Opinião

LUIZ GONZAGA FENELON NEGRINHO

Elos desfeitos nas calçadas

Antes do acontecido, a senhora dizia a seu servo para fazer caminhadas, que faz bem à saúde, combate o estresse, fortalece o tônus muscular, queima calorias e muito mais.
Incitava-o a fazê-lo à tarde. Chegava a dizer, graciosamente, para caminhar sempre, desde que seja para frente, pela qualidade de vida. Velejando certo, com o corpo e a mente sintonizados – que o planeta e o reino animal agradeceriam.
Entretanto, num fim de tarde quente de verão, a senhora de fino trato e de bons aconselhamentos, ativou a sensibilidade de seu criado como se fora 2000 quadros a serem fixados na parede. Não importa: um Portinari, Van Gogh, Picasso, Renoir, Jackson Pollock.

Não atinando para o direito de ir e vir previsto em lei maior, não permitiu que seu aconselhado tomasse com ela o mesmo espaço da calçada – essa bem distante da fama. Determinou que não andasse próximo. Tomasse a traseira ou dianteira do passeio, dando a entender que sua reputação estaria em jogo se os vissem juntos. Não restou alternativa ao pobre homem senão acatar e obedecer cegamente com respeitosa atenuante “sim, senhora”.

Usar o passeio ou calçada não é apenas direito de todos. É salutar, melhora as condições de vida, cuida-se de estreitar laços entre as pessoas, isto é, desde que não haja pedras no caminho, buracos, cascas de bananas para escorregar e cair, entre outras tantas ameaças e entraves. A caminhada é recomendável pelas normas medicinais, como bem disse a suposta dona da situação.
Mas a patroa se julgou superior. Impediu que o modesto serviçal caminhasse no mesmo passeio, lado a lado. Como uma personagem de um filme da Disney, muito conhecido: “A Bela e a Fera”. A Fera de então acabou hostilizada por Madame Samovar.

É justamente num episódio como esse que nos remete à concepção da tirania em relação à liberdade-amor e à liberdade-serviço. No varejo e atacado, o livre-arbítrio, hifenizado ou não. A escolha no peso da balança tem o seu preço.
Vale lembrar: quem opta por amar, não pode conhecer e praticar a escravidão do orgulho, vaidade e preconceito. Esses sentimentos são inaceitáveis. Imprescindível é um não pavonear-se de forma alguma ante as regras da alegria de bem viver.

No calabouço da amargura, todos nós temos direitos. E somos humanos, com qualidades e defeitos. Dos mais simples aos abastados; nada de diferença de sorte. Não existem masmorras em castelos de areia, principalmente quando há passagens secretas para se ir ao encontro do mundo liberto das aparências vãs. No real, quem ama não ridiculariza. A zombaria é caricata, descuidada e extremamente melancólica.

Uma pessoa manifesta vontade de viver quando se propõe a cantar, afinada ou não. Outra, assobia quando toma da calçada ou passeio no uso regular, para fazer valer o desejo momentâneo de ser feliz. Outras, há, se expressam na linguagem da paz e do silêncio. Cada um a seu modo.

Como viver amando se a soberba não permite uma relação forte e duradoura de um bem maior? O servo poderia, sim, aproximar-se e caminhar rente na calçada com a senhora de ricos adornos. E deveria se contrapor aos quadros frios e futuros incertos a serem colocados nas paredes como que alegorias surreais e abstratas, os quais os pósteros, em atitudes desrespeitosas, no provável, irão aleatoriamente destiná-los, na resultância natural, às lixeiras do desinteresse, por julgarem sem valia alguma.

Nem há que se falar: a circulação de pessoas nos passeios e calçadas é assegurada por legislação federal, estadual e municipal. Portanto, a senhora ora citada – nem um pouco se parece com Madame Bovary de Gustave Flaubert – não admite, pretende e objetiva que seu criado fique ao seu lado na calçada, nem sequer para um passeio. Talvez o servo seja oriundo de lugares baços, neutros e desconhecidos. Ou será a angústia da solidão da senhora falando alto na montanha de muitas desilusões?
Cultivar virtudes é preciso, notável até. Abraçar a frivolidade é algo tão abjeto quanto dispensável. Detestável sob todos os aspectos estereotipados.

Na padronização e humanização legal dos passeios e calçadas, na plenitude constitucional, democracia plena, todos nós somos iguais perante a lei. A propósito, li em algum lugar sobre o tema: “A calçada é um elo de concreto, sob nossos pés, que nos permite chegar ao outro”. Uma conexão, portanto. Ligação estreita e direta. Do contrário, em ofensa à moral e à religião, poder-se-ia dizer, sem pestanejar: “Emma Bovary c’est moi”.

À senhora de indubitáveis apetrechos, toda a sorte do mundo. Entretanto, a concessão de uma pequena parte da calçada jamais poderia ser negada a quem quer que seja, em que pese a beleza e os requintes de uma linda e dourada criatura.
O egoísmo (conduta humana imoral) deve ser deixado para as traças de um passado longínquo que não volta mais. Não se chora pelo leite derramado. É ato de assunção das consequências advindas, sem que o queiramos. E assim, como diz a bela melodia de Herivelto Martins: “Caminhemos… Talvez nos vejamos depois”.

Será? A pergunta paira no ar da esperança de que um dia tudo se normalize e tome contornos nos ângulos existenciais da salutar recuperação e, quiçá, recomeço para novos porvires. Tudo é possível na esfera do querer, recomposição, desapego, mudança, e, sobretudo, o benfazejo ‘perdão’.
A propósito, a palavra mágica está mais para quem perdoa do que para o perdoado. Não acredita em Deus? Tudo bem. Aplique a lei da física. O sabor do perdão é inigualável para quem o pratica. Assim: pura e simplesmente, inexplicável.

LUIZ GONZAGA FENELON NEGRINHO é advogado. (luizgfnegrinho@gmail.com)

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