Alexandre Marino
Cicatrizes do acaso
Meu primeiro encontro com o escritor Oswaldo França Jr. aconteceu em abril de 1989, em Belo Horizonte, e naquele dia eu não poderia imaginar a sequência de fatos inusitados que viriam em seguida. Eu era repórter de Cultura no Correio Braziliense, e no dia 25 daquele mês, uma terça-feira, seria lançado em Brasília o filme “Jorge, um brasileiro”, baseado em seu romance de mesmo título. França Jr. estaria na cidade para o evento, e o jornal preparava uma grande cobertura. A entrevista que ele me concedeu, em sua casa, ganharia uma página inteira.
Até então eu só o conhecia pelos livros, e fui recebido por uma pessoa gentil e cativante, de ótima conversa. Passamos toda a tarde falando de seu trabalho e sobre o filme, uma superprodução dirigida por Paulo Thiago, com Carlos Alberto Riccelli no papel principal. Esgotados os assuntos da entrevista, passamos a uma conversa mais pessoal e lhe contei que também escrevia e preparava um livro de contos. “Mande para mim, eu quero ler”, ele me disse.
França Jr. tinha 52 anos, 13 livros publicados e uma história pessoal que daria outro filme. Estava no auge de sua carreira como escritor, mas antes havia lutado muito para sobreviver. Na adolescência, era alucinado com aviação e entrou para a Aeronáutica, tornando-se oficial aviador.
Em 1964, com o golpe militar, foi expulso da Força depois de se recusar a bombardear o Palácio Piratini, sede do governo do Rio Grande do Sul, onde o então governador Leonel Brizola se insurgia contra o movimento. Casado, com três filhos e sem meio de sobreviver, foi corretor de imóveis, dono de bancas de jornais, negociou com carros usados e teve até uma frota de carrocinhas de pipoca. Até que seus livros começaram a vender e ser traduzidos no exterior.
Menos de um mês depois da publicação da entrevista, voltei a escrever sobre França Jr. no jornal. Em estado de choque, redigi seu obituário, descrevendo o acidente que lhe tirou a vida, na rodovia BR-381, conhecida como rodovia da morte, próximo a João Monlevade, a 120 km de Belo Horizonte.
Ironicamente, ele conhecia bem os perigos dessa estrada. No romance “Jorge, um brasileiro”, que relata a saga de um grupo de caminhoneiros que transportavam uma carga de milho do Vale do Aço até Belo Horizonte, ele escreveu: “Perto de Monlevade entramos na estrada nova e começamos a correr. Tive que me lembrar e diminuir aquela correria, porque com carros pesados como estavam aqueles, isso não era coisa boa.”
Oswaldo França Jr. estava em Monlevade na sexta-feira, 9 de junho, para um evento promovido pela Livraria República Literária, que comemoraria um ano de fundação no dia seguinte. As duas proprietárias, Jacqueline Silvério e Nádia Rodrigues, estavam eufóricas.
A presença de um escritor de prestígio nacional sensibilizou a cidade, as escolas envolveram os estudantes na festa, grande público compareceu e a prefeitura contribuiu. A festa foi tão intensa que Jacqueline nem pensou mais no telefonema que, na véspera, recebera da mãe: “Minha filha, fique atenta. Sonhei que houve um acidente com o escritor, vi até um helicóptero que foi atendê-lo na estrada.”
No sábado, 10 de junho, França Jr. foi cedo à livraria para se despedir. Fez fotos, comeu um pedaço de bolo e saiu. Pouco tempo depois começaram a chegar as notícias. Ele havia perdido o controle do Ford Escort que dirigia e o carro rolou numa ribanceira.
Chegou a ser atendido no hospital da cidade, mas não resistiu. “Até hoje, passados 34 anos, me emociono muito com a lembrança daqueles momentos”, conta Jacqueline. “Por longos anos carregamos o estigma de termos trazido o escritor que morreu. Ficamos marcadas por isso. Até hoje ouvimos comentários. É muito pesado e desagradável. Mas tivemos uma ligação muito forte, muita proximidade, natural e sincera, que permanece até hoje. Foi como um reencontro de almas.”
Conheci Jacqueline, Nádia e a livraria menos de um ano depois, por mais uma estranha coincidência. Para homenagear o escritor, elas promoveram, com apoio da prefeitura, o Prêmio Oswaldo França Jr. de Literatura. Quando eu soube, selecionei três contos do livro que preparava, e que França não teve tempo de ler, e enviei ao concurso. Quando recebi a correspondência informando que eu havia vencido, tive a sensação de que França finalmente havia lido meus contos. Viajei a Monlevade para receber o prêmio e vivi outra experiência emocionante, ao lado de artistas e escritores da cidade e de Minas e das duas jovens empresárias, cuja dedicação aos livros e à literatura pode ser sentida até hoje.
Este mês, Jacqueline e Nádia comemoram os 35 anos de fundação da Livraria República Literária, que continua promovendo eventos e é ponto de encontro da cidade. A livraria pode ser encontrada no Instagram (@republicaliteraria). O choque daquela tragédia é uma cicatriz na memória, mas a literatura e a livraria permanecem vivas, apesar das incontáveis dificuldades.
ALEXANDRE MARINO, escritor e jornalista em Brasília/DF, escreve quinzenalmente às sextas nesta coluna