25 de maio de 2023
ALBERTO CALIXTO MATTAR FILHO
Na infinito mundo dos livros, por vezes ficamos diante de obras que exigem entrega absoluta. Sem desvios. Apenas o olhar e o espírito plenamente envoltos nas páginas. Isso já me ocorreu com Thomas Mann, Guimarães Rosa, Dostoiévski. Outros mereceriam lembranças.
Foi o que se deu em “Sob o sol de satã”, de Georges Bernanos, uma indicação do crítico literário Rodrigo Gurgel. Influências necessárias. Enriquecedoras. Aqui, apenas compartilho mais uma admiração.
Georges Bernanos nasce em 20 de fevereiro de 1888, em Paris, e morre, em 1938, no interior da França. Jornalista e escritor, Bernanos chegou a lutar durante a Primeira Guerra Mundial, além de ter trabalhado, alguns anos, em uma cia. de seguros,
Demais dados biográficos apontam que, por divergências políticas a posturas da França em relação ao Nazismo, veio se autoexilar no Brasil entre 1938 e 1945. Na casa que o abrigou em Barbacena (MG), funciona hoje o Museu George Bernanos. Ainda o visitarei.
Considerado uma espécie de Doistoiévski francês, dizem que ele nem almejava se transformar em um escritor, mas escrevia por pura necessidade e para se libertar da intensidade de sua imaginação. “Escrevo nos cafés e trens para não ser vítima de criaturas imaginárias e para reencontrar, através de um olhar lançado ao desconhecido, a medida certa da alegria e da dor.”
Compreensível. O ato de escrever representa, acima de tudo, uma devoção. Em quaisquer situações, quem o exerce admite que é imperioso expulsar as palavras que povoam e incomodam o pensamento.
Bernanos escreveu vários outros romances, mas a leitura de “Sob o sol de satã”, publicado em 1926, já se torna suficiente para perceber como ele era capaz de construir textos densos, profundos, dolorosos e que demandam persistência, releitura de trechos e anotações de páginas, palavras e instantes célebres, tudo no intuito de assimilar as suas mensagens.
O enredo não chega a ser difícil, mas o protagonista, o padre Donissan, talvez seja um dos personagens mais complexos da própria história da literatura. Talvez venha daí o fato de alguns críticos considerarem Georges Bernanos o Dostoiévski francês, pois o russo é mestre na criação de personagens enigmáticos, conflituosos e até bizarros.
O romance, de 319 páginas, se divide em algumas poucas partes, mas seu núcleo está na trajetória desse pároco que vai tentar a carreira eclesiástica em um vilarejo também da França nas primeiras décadas do século XX. As trajetórias de outros personagens servem ao objetivo de ressaltar o que ocorria no íntimo dele, o vigário Donissan.
Embora fosse um sujeito simples, tímido e de hábitos rudes, ele ostentava poderes sobrenaturais, o que o levou a ser visto como um padre milagroso, um santo. Procurado por inúmeros fiéis em busca de confissões, pôde então ouvir os eternos dramas de milhares de pecadores.
Os enigmas vão se desvendando aos poucos, enquanto progridem as suas crises no desenrolar da história. Um dos ápices ocorre no momento em que, durante uma caminhada noturna, recebe a aparição do diabo. Sim, isso mesmo. Sob o corpo de um humano que, de repente, lhe surge pelo caminho, ali está, na verdade, Lúcifer, que se revela, apresentando-lhe ironias, deboches, desafios e desencantos
Eis o fato: um homem de Deus, porém atingido pelo diabo. Um santo a quem se recorria em busca da salvação, mas um conhecedor dos males das tentações diabólicas e torturado por conflitos entre o bem e o mal. Um pároco que deveria absolver os pecadores, mas acossado pela desesperança. Um religioso em conflito entre Deus e o diabo. Em busca da luz divina, influenciado, todavia, pelo sol de Satã.
São páginas e mais páginas em que surgem seus monólogos interiores em constantes dilemas, cuja solução buscava até em atos drásticos como a autopunição, com vergastadas ou chibatadas − este, um termo popular – em seu próprio corpo.
Na profusão dos dramas, tentou também aprimorar o estudo de livros religiosos, clamou a Deus, pediu milagres, desiludiu-se em transes espirituais e acabou desejando a morte para se aliviar de tantos tormentos aparentemente insolúveis.
Ocorre, em “Sob o sol de Satã”, o que se pode denominar linguagem das trevas, a que reside nas angústias de um homem que conheceu muito mais do que a vida comum nos permite, já que ao padre Donissan foi dado ver sempre além. Em outra metáfora, um romance que prima pela linguagem do sangue, tão fortes as dores do protagonista.
Evidente que muito foi e deve ser dito a respeito de uma obra de tamanha exuberância. A simbologia ou dualidade Deus e diabo, a propósito, está presente em grandes obras da literatura. Lembremo-nos de “Fausto’, de Goethe, um dos textos que aqui já publiquei.
Contudo, uma antítese não apenas nas páginas dos livros. Tal simbologia é farta em circunstâncias da realidade. Os paradoxos da literatura de Georges Bernanos são os nossos. O bem e o mal nos pertencem.
Os impasses muito bem transpostos para as páginas de “Sob o sol de satã” significam uma aventura nos pesadelos de um homem da fé entre as visões trágicas e a sede de redenção. Mistérios.
ALBERTO CALIXTO MATTAR FILHO escreve quinzenalmente, às quintas, nesta coluna (mattaralberto@terra.com.br)