ALEXANDRE MARINO
Um relógio para chamar de meu
Saio de casa para comprar um relógio. O mundo está cheio de relógios em todas as direções a que dirijamos nosso olhar, mas saio de casa com esse único objetivo: comprar um relógio. Não um relógio qualquer: um relógio de pulso, do tipo que usei desde os seis anos de idade, quando fui para a escola, e acabou substituído há alguns anos pelo telefone celular.
Meu primeiro relógio de pulso eu ganhei de minha mãe, que antes o havia usado quando estudou em Belo Horizonte. Valia como uma espécie de certificado de mais uma etapa que se cumpria na vida: eu começava a compreender a passagem do tempo e sabia ler o instrumento que me impediria, por exemplo, de chegar atrasado à aula. Naquela época não existiam os relógios digitais, e era preciso desvendar os segredos dos ponteiros, que pareciam parados mas se moviam incansavelmente, e dos números que mudam de valor…
Pequenino e de corda, eu não tirava o reloginho nem para dormir. Usei-o durante vários anos, e ele até sobreviveu a um acidente. Meus tios e primos de Belo Horizonte foram passar uma temporada em Passos, e meus pais decidiram mostrar-lhes as belezas do Lago de Furnas. Às margens da rodovia paramos perto de um poço, onde a água descia de uma cachoeira, corria pelas pedras e passava por um túnel sob a estrada. Tirei o relógio do pulso e o coloquei sobre uma pedra, junto com as roupas.
De repente o tempo começou a fechar e a água a subir. Meu tio se assustou e quis ir embora. Foi nossa salvação. Saímos rapidamente, mas o local onde havia deixado o relógio estava cheio d´água e não o encontrei. Entramos no carro e pegamos a estrada de volta, já debaixo de chuva. No meio do caminho alguém avisou a meu pai que tinha havido uma tromba d´água e já estavam começando as buscas por pessoas arrastadas pela correnteza.
Dois dias depois, uma pessoa que atuava nas buscas encontrou o relógio e o devolveu a meu pai. O relojoeiro Joaquim Ourives fez a limpeza e o pôs para funcionar de novo. Usei-o por mais algum tempo, até que ganhei de minha mãe um outro relógio, automático, como prêmio por concluir o curso ginasial, equivalente ao ensino básico de hoje. O velho reloginho passou a ser usado por minha tia Nezita, que também tinha prazer em erguer o braço e responder a quem lhe perguntava as horas.
Diz a lenda que o inventor do relógio de pulso foi Santos Dumont, como se já não fosse muito ter inventado o avião. Santos Dumont adotou o relógio de pulso por uma necessidade prática, pois precisava das mãos livres para suas experiências aeronáuticas, que culminaram em seu voo mais famoso, com o 14-Bis, em 1906, em Paris. Os relógios de pulso só existiam na forma de joia, nas famílias reais e nas classes altas, cheios de pérolas e esmeraldas.
Para uso prático, começaram a se popularizar na década de 1920. Meu avô, que nasceu em 1890, nunca adotou o relógio de pulso. Ele portava seu relógio pessoal no bolso do colete ou da calça, preso por uma correntinha. Lembro-me dele já idoso, apoiado numa bengala, interrompendo a caminhada para tirar o relógio do bolso e consultar as horas. Foi a primeira noção que tive de uma pessoa conservadora. O reloginho que aos seis anos eu levava no pulso era muito mais prático.
Hoje existem no mercado outros tipos de relógios, como os Rolex, joias de preço proibitivo e suas falsificações, passando pelos eletrônicos, que são computadores de pulso e também podem ser usados como telefone ou nos avisam diante do risco de um ataque cardíaco. Mas esses eletrônicos não são relógios, assim como smartphones não são só telefones.
Eu queria um relógio digital que me informasse, além das horas, a data, e tivesse o recurso do despertador, mais nada. Uma coisa simples, diante de tanta sofisticação. Eu o encontrei numa loja que só vende relógios, coisa rara nestes tempos, dentro de uma feira de importados onde se encontram outros produtos absolutamente inusitados, vindos da China, Vietnam e outros países asiáticos – e outros lugares do mundo.
Depois que inventaram o smartphone, onde cabe tudo, inclusive a nossa vida inteira, vivemos um estranho retrocesso em alguns hábitos. O relógio de pulso, que Santos Dumont adotou no início do século 20, começou a se popularizar nos anos 1920 e era usado maciçamente nas décadas seguintes, desapareceu. Agora, o normal é tirar um objeto do bolso para consultar as horas, da mesma forma que meu avô fazia. É por isso que me sinto de novo como aquele menino de seis anos, que levava no pulso todo o tempo do mundo.
ALEXANDRE MARINO, escritor e jornalista em Brasília/DF, escreve quinzenalmente às sextas nesta coluna