ALEXANDRE MARINO
A volta do seresteiro
José Marino, meu pai, chegou a Passos com vinte e poucos anos, para exercer, como servidor público do Estado de Minas, uma profissão que não existe mais: a de radiotelegrafista. Nestes tempos de inteligência artificial, chips, internet e comunicação instantânea é difícil imaginá-lo transmitindo notícias e ofícios por Código Morse para todas as regiões de Minas Gerais.
Mas era, naquele início dos anos 1950, um serviço tão ágil quanto os telegramas dos correios. Foi assim que ele comunicou meu nascimento a parentes de Belo Horizonte e outras cidades mineiras, e também a amigos virtuais que exerciam a mesma atividade que ele.
Meu pai datilografava as mensagens recebidas, em horários determinados, e as distribuía, geralmente a órgãos públicos. No início ele trabalhava numa sala da cadeia pública. Depois que se casou, aos 29 anos, instalou sua parafernália eletrônica nos fundos do bazar criado por ele e minha mãe, no porão do sobrado onde viviam meus avós e minhas tias. Ali nos habituamos ao ti-ti-ti do Código Morse, uma espécie de música com sua assinatura.
Mas musical mesmo era a voz de meu pai, que quando solteiro andava pelas noites fazendo serenatas às suas musas e às de seus companheiros. Zé Marino era um sujeito simpático e carismático, que colecionava amigos por onde passasse, de noite ou de dia.
Seresteiro, outra atividade inimaginável nos dias de hoje, ele foi até que se casou, mas manteve esse espírito por toda a vida, e frequentemente soltava sua voz bonita e afinada em festas ou reuniões familiares, sempre que alguém empunhava o violão para acompanhá-lo.
Ele não tocava qualquer instrumento, nunca me ensinou a cantar, mas me ensinou a gostar de música, a partir de sua coleção de discos de 78 rpm de goma-laca. Seu ídolo, e modelo de seu canto, era Orlando Silva, cantor que chegou ao máximo do prestígio nos anos 1950.
Entre suas interpretações, meu pai tinha predileção pela canção Sertaneja, uma composição de René Bittencourt que certamente está entre as mais belas obras do cancioneiro brasileiro de todos os tempos, gravada por vários intérpretes, inclusive alguns em plena atividade, como o carioca Zé Renato.
Sabendo de meu amor por música e por seu canto, meu pai me enviou de presente, em março de 1995, numa fita cassete, uma gravação à capela dessa canção. Com as novas tecnologias a converti para arquivo MP-3, acessível em computador ou telefone celular.
Recentemente, em Belo Horizonte, numa conversa com meu amigo Celso Adolfo, um dos grandes artistas da música mineira contemporânea, lhe apresentei essa gravação e ele se espantou com a beleza da voz e a afinação de meu pai. E lançou a ideia de criar um arranjo instrumental, em estúdio, para acompanhar o Zé Marino.
Seria uma bela homenagem a prestar a ele, que partiu para outras dimensões em 2013, talvez sem que tenhamos ajustado nossas imperfeições de pai e filho. Depois que ele se foi, comecei a compreender coisas que não compreendia antes, e criei um solitário diálogo entre nós.
Dessa forma, sinto que sua presença reverbera em meu espírito. Esta música, que ele canta agora acompanhado dos violões e vocais de Celso Adolfo e da percussão, baixo e vibrafone de Christiano Caldas, é a senha para nossos frequentes encontros. É como se ele estivesse presente às gravações realizadas no Estúdio 71, em Belo Horizonte, no mês passado.
Conheci Celso Adolfo nos anos 1970, em Belo Horizonte. Depois de ter seu primeiro disco produzido por Milton Nascimento, em 1982, ele lançou outros trabalhos admiráveis, como o álbum Remanso de Rio Largo, uma releitura musical do livro Sagarana, de Guimarães Rosa. Minha familiaridade com sua música foi parte desse processo de envolver o canto de meu pai numa rica roupagem instrumental, que adquiriu enorme valor para mim.
A intenção deste relato não é divulgar mais uma gravação de um clássico, que não estará disponível nas plataformas ou redes sociais, mas refletir sobre o enorme poder da música sobre nossas emoções, memórias e vivências. O acompanhamento à voz de meu pai multiplicou a força daqueles versos (Sertaneja/ por que choras quando canto/ se este canto é todo teu/ Sertaneja/ pra secar os teus olhinhos/ vá ouvir os passarinhos/ que cantam mais do que eu). É possível que agora provoquem em outros ouvintes eventuais o mesmo nó na garganta…
A voz de meu pai me conduz através de um rio cuja margem oposta eu desconheço. Ele me acena de lá, orgulhoso dessa criação que sua iniciativa, anos atrás, tornou possível. Imagino o que ele diz, pois é assim que dialogamos com aqueles que atravessaram a inevitável fronteira. Tenho aprendido muito com seus gestos, com suas palavras, com sua memória. Talvez para isso sirva a morte: para que nós, ainda vivos, aprendamos. Ainda que seja tarde demais. Ou talvez nunca seja tarde demais.
ALEXANDRE MARINO, escritor e jornalista em Brasília/DF, escreve quinzenalmente às sextas nesta coluna