ALBERTO CALIXTO MATTAR FILHO
Ligações perigosas, de Choderlos de Laclos
Há décadas, assisti ao filme sobre a obra. Anos depois, fiz o mesmo em relação à minissérie que a Globo produziu, com o passense Selton Mello, em performance excepcional, no papel de um dos protagonistas, o visconde de Valmont.
Foi o inverso do que gosto de fazer. Quando livros são adaptados para outros projetos, sempre prefiro já ter lido o livro antes. Livros são muito mais completos do que filmes e séries, ainda que as adaptações possam ser ótimas. Faltava-me, portanto, a leitura de suas 403 páginas.
“Ligações perigosas” possui uma característica bem particular e inteligente: ser um romance epistolar, cujo teor é composto, na íntegra, por cartas que os personagens trocam entre si. Um clássico das epístolas.
Seu autor, o francês Choderlos de Laclos, nasce ao norte de Paris, em 1741 e faz vasta carreira militar em um cenário de turbulências na França anterior à Revolução e ao aparecimento de Napoleão Bonaparte. Morre em 1803, quando exercia funções em Nápoles, no sul da Itália.
Choderlos, em meio a outras obras de menor calibre, escreve ‘Ligações perigosas” entre 1778 e 1782. A primeira edição, com dois mil exemplares, logo se esgota em duas semanas. Enorme a repercussão que causara. Um sucesso editorial.
Os motivos se deviam ao fato de que o romance apresenta as relações convencionais da aristocracia francesa do século XVIII, quando os casamentos eram realizados por interesses familiares de posses e ascensão social. Eis os motivos por que surgem, no texto, as frustrações amorosas e a série de infidelidades que chocam bastante a sociedade da época.
Vários estudos se realizaram sobre tal livro, que, por trazer à luz tantos fervores de libertinagem, interesses abjetos e sexualidade, chegou a ser proibido, durante o século XIX, por tribunais de Paris. No entanto, em meados do século XX, logo se torna leitura frequente nas universidades francesas e recebe várias adaptações para cinema, televisão e teatro.
Tudo leva a crer que uma das intenções de Choderlos de Laclos era ressaltar a força que o sexo exerce sobre nós, ao criar um romance em que outros valores mais elevados acabam sucumbindo aos desejos mais primários de homens e mulheres. Daí as repulsas e resistências que provoca.
No longo enredo, há dois protagonistas, o visconde de Valmont e marquesa de Merteuil, que viveram uma relação amorosa no passado e se unem, em terrível aliança, com o intuito de se vingar dos parceiros que lhes teriam sido infiéis tempos depois. O antigo amante da marquesa vivera um caso com a então mulher do próprio visconde.
Desse fato é que decorre o envolvimento de outras pessoas que se tornariam seus alvos na execução dos planos diabólicos. O visconde, com base em seu poder de sedução de quaisquer mulheres, de jovens a experientes. A marquesa, em suas malícias de toda natureza para atrair a confiança alheia com objetivos os mais perniciosos. Em geral, dois frios manipuladores que não se importavam com as dores alheias.
A história vai então transcorrendo sob o volume de cartas entre os personagens, o que exige do leitor bastante atenção para os detalhes a que se referem e até certas doses de obstinação para desvendar os acontecimentos e evoluir para o final.
O mais interessante, todavia, está na maneira com que foi construída. As cartas eram as formas mais fáceis de se comunicar. A todo instante, temos um personagem a escrevê-las. Isolados em seus quartos e, muitas vezes, impossibilitados de encontros pessoais, restavam-lhes a pena e a folha em branco.
Temos, assim, as cartas mais falsas e aptas a enganar os destinatários, como as do visconde e da marquesa, mas, por outro lado, ainda existem, mesmo em um cenário de crueldades, as de sentimentos verdadeiros, dentre as confissões de amor e os bons conselhos, como as oriundas das vítimas dos dois protagonistas.
Vivemos, claro, sob a instantaneidade das comunicações tecnológicas, um fato de inegável utilidade hoje em dia. Talvez nunca se tenha escrito tanto, mas, infelizmente, em níveis tão escassos de clareza e respeito às regras, como, por exemplo, nas telas de celulares.
“Ligações perigosas” vem de outros tempos, e as expectativas de escrever e receber cartas há muito se foram. O costume da boa escrita e dos pensamentos mais elaborados também não mais preponderam nas velozes comunicações interpessoais.
A importância desse romance significa, pois, uma lembrança e um louvor ao ato de escrever, o estágio mais evoluído da linguagem. Além do foco para as tramas maquiavélicas, deve ser admirado porque apresenta personagens que se dispõem a escrever profundamente sobre suas angústias.
Sim, quando imergimos na escrita, é que nos é dado sentir os verdadeiros poderes das palavras reflexivas, ou para expor razões inequívocas, ou para apresentar teses falaciosas e próprias para ludibriar.
Nas cartas de “Ligações perigosas”, aparecem extremos entre princípios dignos e atos os mais frívolos e torpes possíveis. Na realidade, sempre estivemos expostos a dignidades, frivolidades e torpezas.
Eis a literatura, essa imensa fonte que se vale das nossas condutas.
ALBERTO CALIXTO MATTAR FILHO escreve quinzenalmente, às quintas, nesta coluna (mattaralberto@terra.com.br)