14 de abril de 2023
André Roncaglia
Costuma-se dizer que governo de esquerda não precisa de oposição da direita. A própria esquerda assume esta tarefa.
Depois da reação negativa ao novo arcabouço fiscal, o fogo amigo mira agora a aplicação do tributo de importação sobre compras online.
A Portaria do Ministério da Fazenda nº 156, de 24 de junho de 1999, estabeleceu isenção de imposto de importação a remessa postal internacional no valor de até US$ 50 (ou equivalente em outra moeda), desde que o remetente e o destinatário sejam pessoas físicas. Ou seja, nenhum imposto novo foi criado.
Aproveitando-se da regulação, empresas estrangeiras de ecommerce subfaturam e fracionam as compras em pacotes menores, e usam o nome fictício de pessoas físicas para sonegar imposto.
Fechar brechas tributárias é obrigação de qualquer governo. Premido pela necessidade de entregar um ajuste fiscal apoiado em maior equidade tributária, Haddad vem atacando outras frentes de elisão e sonegação tributárias, como mencionei em artigo anterior. Mais de 90% do esforço de ampliação da base fiscal se concentra em grandes empresas.
A principal crítica à medida é: ao atacar a sonegação de empresas estrangeiras, o governo estaria reduzindo o poder de compra da classe média e dos mais pobres. Contudo, é preciso considerar que subsidiar concorrentes estrangeiras de varejo que praticam fraude fiscal é tudo, menos política de desenvolvimento. Segundo: a apreciação cambial em curso e a valorização real do salário mínimo compensarão esta perda ao longo do tempo.
A prática desleal de concorrência tem implicações fiscais, sociais e econômicas. Como no caso da isenção de tributos sobre a cesta básica e a desoneração dos combustíveis, os ricos também se beneficiam.
A regressividade desta “sonegação do bem” aparece em outros efeitos indiretos. Em face da precarização do emprego e dos baixos salários de 60 milhões de trabalhadores informais no Brasil, os mais afetados são aqueles que atuam no varejo. Para defender suas margens de lucro mediante a concorrência predatória, empresários cortam empregos, fecham lojas e aumentam a pressão por desempenho de vendedores.
No longo prazo, a economia fica mais dependente de importações e perde densidade industrial. No Brasil, com sua desindustrialização precoce e acelerada, o que é barato para o consumidor pode custar caro para a sociedade.
Não é de hoje que a ascensão chinesa mundo afora desarticula cadeias produtivas nacionais. Este modelo de “manufatura do mundo” transformou o país em uma potência econômica. No entanto, o plano de disputar a liderança em setores de tecnologia de ponta, como semicondutores e computação quântica, reduziu o espaço da manufatura de baixa sofisticação na economia chinesa.
Com o cerco do Partido Comunista Chinês sobre as empresas de aplicativo, a saída foi expandir sua atuação no exterior, explorando brechas na legislação aduaneira de diversos países. Os EUA deflagraram recentemente uma força-tarefa para impor limites à prática de comércio desleal por empresas chinesas.
Neste sentido, a viagem de Lula à China pode promover parcerias estratégicas com os setores de ponta da China, para alavancar investimentos em infraestrutura e tecnologia, gerando melhores empregos no Brasil, com ganhos de produtividade de longo prazo.
O caminho do desenvolvimento é longo e incômodo. Exige união, esforço e muito sacrifício para fugir de tentações que prometem prazeres rápidos, mas geram dependência duradoura.
O alarido criado por esta medida secundária revela a instabilidade da base de apoio do governo em face de múltiplos desafios e das obstruções da oposição. Se o governo não transmitir à sua base uma visão integrada de desenvolvimento, as tensões internas o corroerão por dentro.
André Roncaglia é professor de Economia da Unifesp e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP