Opinião

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18 de janeiro de 2024

Entre Selton Mello e literatura

Dia desses, a presença de Selton Mello em Passos para lançar seu livro no Cine Roxy arrebanhou multidão em imensa fila de tal forma, que os livros disponíveis se esgotaram bem antes e não foi possível atender a tanta gente. Estou entre os que não conseguiram adquirir a obra.
O evento, porém, me trouxe à lembrança outra ocasião em que Selton esteve por aqui – creio que em fins de 2009 −, fato que me rendeu um texto à época. Havia um festival de cinema em Passos, e, durante o evento, ainda houve um momento especial para que ele pudesse falar ao público no mesmo Cine Roxy.
Em determinado instante, Selton mencionava algo sobre o filme “O Cheiro do Ralo”, que era baseado em um livro de Lourenço Mutarelli. Naqueles tempos, por coincidência, eu estava lendo outra obra de Mutarelli, o que então gerou o texto do início de 2010 que ora reproduzo, com algumas alterações, nos parágrafos abaixo. A escrita provoca reescritas. A leitura causa releituras.
Num momento em que o filme “Tropa de Elite 2”, em cartaz em Passos, ingressa no rol dos recordes das bilheterias nacionais, com grande atuação de Wagner Moura, lembrei-me de que, no ano passado, tivemos, também em Passos, o Festival Selton Mello, um evento para exibir filmes estrelados por esse nosso brilhante conterrâneo.
Durante a amostra, assisti a um deles, “O Cheiro do Ralo”, cuja estreia nas telas brasileiras ocorrera em 2006. Pouco antes da exibição, Selton Mello relatava ao público o porquê daquele filme. Dizia então que, durante viagem aérea pelo Brasil, havia lido o livro de Mutarelli, uma obra que o impactou a ponto de almejar que o texto viesse a ser adaptado para o cinema, e ele pudesse atuar como o protagonista.
Pois foi o que se deu. Selton abraçou o projeto e se transformou no grande ator de “O Cheiro do Ralo”, quando o livro já estava nas telas sob a direção de Heitor Dallia e adaptação do roteiro pelo escritor Marçal Aquino.
Vencedor de vários prêmios, a crítica alega que nem todo o talento cinematográfico do mundo seria capaz de transformar o romance em filme, se não houvesse a enorme capacidade de um ator como Selton Mello, pois se trata de uma história que depende quase que exclusivamente do protagonista.
Quem gosta de filmes incomuns e criativos, por certo, vai admirar “O Cheiro do Ralo”. Ali estão mensagens sobre os limites da dignidade e da sanidade em torno das complexas relações entre pessoas e objetos, sentimento e matéria.
Lourenço Mutarelli, o autor do livro, nasceu em São Paulo, em 1964, e é um especialista em histórias em quadrinhos que já escreveu alguns outros romances e peças de teatro.
Quando Selton abordava as razões do filme, que seria exibido em seguida, fazia, claro, referências a Mutarelli, qualificando-o de genial. Ao ouvir o que ele manifestava, também me lembrei do mesmo escritor, porque eu lia, naquela ocasião, “A Arte de Produzir Efeito sem Causa”, seu último romance.
O fato é que a literatura normalmente vai nos apresentando novos escritores e obras em infinitas histórias que sempre se valem da existência humana como fonte de inspiração.
Em “A Arte de Produzir Efeito sem Causa”, surge a trajetória de Júnior, que fica arrasado após perder o emprego e a mulher – ela o traíra com o patrão e até com o filho do patrão. Imaginem! Deprimido e sob dificuldades financeiras, só restava ao sujeito o retorno à casa de seu pai, com quem mantinha relações difíceis.
Reconheçamos que se trata de um enredo catastrófico, não? Afinal, como não se atordoar numa situação dessas?
Talvez, em razão da estabilidade de nossas convivências e do constante ritmo do trabalho, e até do lazer, essas rotinas comuns sem maiores abalos, quase nunca pensamos que algo totalmente desastroso possa nos acontecer.
Eis que, de repente, somos absorvidos por efeitos cuja causa ou causas não conseguimos identificar com clareza, mesmo tentando pensar intensamente sobre os motivos que pudessem gerar os infortúnios.
Assim, de adaptados a uma vida sem grandes transtornos, somos atirados a uma espécie de mundo sem chão, com o efeito das dores e vácuos existenciais que só trazem incertezas, angústias e até torturas psicológicas. É o destino do personagem Júnior.
Mas a literatura, além de conteúdo, é forma, maneira de narrar, de estilo, ou, noutros termos, escolha de palavras e frases para construir episódios que envolvam o leitor. São aspectos em que Lourenço Mutarelli também demonstra bastante talento.
Os livros sempre me movem. Os livros formam vínculos. Os vínculos profundos da leitura.