ALEXANDRE MARINO

1.107 cervejas

Quantas cervejas você já tomou na vida? A pergunta levará um apreciador da bebida a se lembrar de encontros, comemorações, pessoas especiais que dividiram uma mesa ou fizeram um brinde. O apreço pela cerveja, bebida socializante por excelência, é generalizado. Se há grupos de torcedores diante de um jogo de futebol, de amigos numa festa ou na praia, numa roda de samba ou happy-hour, também haverá cerveja. Por isso, é impossível responder a essa pergunta.

Também não tenho ideia de quantas cervejas saboreei ao longo de décadas de vida, mas guardo comigo uma prova irrefutável de que tomei, no mínimo, 1.107 cervejas. Pelo menos é esse, até o momento em que escrevo, o número de rótulos de uma coleção que já completou 51 anos, todos assinados no verso pelas pessoas que brindaram comigo. Os rótulos trazem informações preciosas. Cada um registra a data e local onde a cerveja foi degustada, além de desenhos, versos, confissões, filosofias baratas ou achados poéticos, denunciando o estado de espírito dos convivas da mesa.

Reconheço que é mais interessante que uma coleção de fotografias, onde cada um posa com um sorriso forçado. Mas a coleção começou por acaso. Em 1972, ainda adolescente, eu planejava com Antonio Barreto, Marco Túlio Costa e Paulo Regis Silva o lançamento da revista literária Protótipo, em Passos, quando ganhamos nosso primeiro prêmio literário.

Viajamos até Itabira para receber nossas medalhas e certificados do Festival de Arte Estudantil, durante o Baile da Primavera, num clube local. Sobre a mesa, uma garrafa de Ouro Branco, cerveja então produzida em Nova Lima, perto de Belo Horizonte. Era 23 de setembro. Retirei o rótulo, anotei local e data e pedi aos amigos que assinassem. A intenção era fazer um registro.
No ano seguinte, comecei a guardar os rótulos das cervejas.

Os “momentos especiais” em que os amigos se reuniam eram o pretexto para colher as assinaturas, e eu sempre exigia que fossem legíveis, para que pudessem ser identificadas em futuro incerto. Todos assinavam, mas ninguém levava muito a sério, pensavam que o destino dos rótulos era o lixo. Eu chegava em casa, guardava numa sacola plástica, no fundo de um armário, e a vida seguia.

Em 1996, 24 anos depois do primeiro rótulo, peguei a tal sacola, inchada de tantos papéis, alguns ainda cheirando a cerveja, separei todos eles, em ordem cronológica, e os guardei em álbuns de fotografias, de forma que pudessem ser vistos por frente e verso. Eram 600 rótulos. Eu já morava em Brasília, e logo depois, numa viagem a Passos, encontrei no fundo de uma gaveta na casa de meus pais o rótulo que faltava: o primeiro da coleção.

Há muitos rótulos de cervejas que não existem mais, como Port, Malt 90 ou Kaiser, mas não é a raridade, e sim as assinaturas e manuscritos, o que lhes dá valor. Uma das mais raras, certamente, é a iraquiana Férida, que tomei sozinho num quarto de hotel em Bagdá.

Era 16 de outubro de 1987, durante a guerra Irã x Iraque. Eu era repórter do Jornal do Brasil e fui o único brasileiro a compor um grupo de jornalistas estrangeiros convidados pela Embaixada daquele país para assistir a um festival internacional de música e dança que acontecia na Babilônia.

Foi na bíblica Babilônia, aliás, que os arqueólogos registraram os primeiros vestígios de cerveja, de 6 mil anos. Na versão saxônica dos Evangelhos, Jesus transforma água em cerveja, tradução para a “bebida forte” dos pergaminhos aramaicos originais. O Cristianismo e a Igreja Católica sempre estiveram associados à cerveja, por intermédio dos mosteiros, casas episcopais e catedrais.

No início da Idade Média a produção era exclusivamente caseira, até que os mosteiros, a partir do século 6, passaram a fabricá-la em maior escala. Hoje os monges trapistas as produzem em grande diversidade e qualidade na Europa, inclusive a que considero a melhor de todas as registradas na coleção: a belga Westmalle, que meu amigo Kido Guerra, que não está mais entre nós, me apresentou em 19 de junho de 1995 no bar Le Cambridge, em Louvain-la-Neuve, onde ele morava.

Há registros de produção para festividades religiosas no século 10 na Catedral de Estrasburgo, na França. Foi nessa cidade que, em 19 de setembro de 2010, assinei o rótulo de uma francesa Fischer, enquanto esperava um show de Leonard Cohen na arena Zenith.

Cerveja e música, tudo a ver. Em 10 de agosto de 2000, Sá e Guarabyra, meus ídolos desde a adolescência por canções como “Primeira canção da estrada” e “Sobradinho”, assinaram um rótulo de Cerpa Export, que tomamos juntos no bar do Hotel Nacional, em Brasília. Assim como a música, a literatura está presente em grande parte dos 1.107 rótulos.

Inúmeros amigos escritores brindaram comigo e assinaram, enquanto procurávamos ao redor de uma garrafa uma solução para as encrencas do mundo. Em 51 anos, muita cerveja jorrou, muitos amigos sobreviveram, outros tantos partiram. Houve até um ou outro que preferiu me cancelar, o que não livra ninguém de permanecer na coleção.
O próximo rótulo será um brinde ao novo ano. Que tenhamos muito a comemorar em 2024!

ALEXANDRE MARINO, escritor e jornalista em Brasília/ DF, escreve quinzenalmente às sextas nesta coluna