15 de dezembro de 2023
ALEXANDRE MARINO
Papai Noel está chegando para cumprir sua sina de todos os anos: enaltecer o consumo delirante, promover uma desesperada corrida às lojas, aos restaurantes, criar a sensação de que finalmente a gastança não é um pecado. E haja pacotes, presentes para toda a família e para si mesmo, troca de carro, banho de loja, renovação do guarda-roupa, aquela viagem sonhada para o paraíso das compras.
Amigos ocultos que de amigos não têm nada e muita comilança na ceia de Natal, uma tradição iniciada com o jejum dos católicos para a Missa do Galo, hoje um evento raro, em parte devido ao aumento da criminalidade, que tornou arriscado frequentar igrejas tarde da noite.
Essa febre momentânea não resolverá o grande contraste que o Brasil não consegue esconder de si mesmo: a desigualdade social e, dentro dela, a fome. Os 20 milhões de brasileiros que sofrem de insegurança alimentar severa continuarão famintos, e outros 50 milhões não saberão quando terão sua próxima refeição.
Somando uns e outros, aí estão 70 milhões de brasileiros, ou 32% da população, que pouco ou nada terão a comemorar neste Natal, a não ser as demonstrações de caridade de pessoas de melhor posição social que tentarão amenizar momentaneamente seu sofrimento.
O bom velhinho, que de bonzinho não tem nada, é representado com um enorme saco às costas, como se tivesse presentes para todo o mundo, a barriga a equilibrar-lhe o peso, longos cabelos e barbas brancas, gorro e capote de lã vermelha apesar dos 40 graus em média que se anunciam para este verão, provavelmente o mais ameno do resto de nossas vidas. Seus clones serão contratados por grandes lojas ou shopping centers para se deixarem fotografar segurando no colo crianças assustadas, cujo choro as mães zelosas tentarão conter.
Papai Noel é onipresente. Está em todas as lojas, em todas as esquinas, nas festas das escolas ou confraternizações de trabalho, subindo pelas paredes dos prédios ou pendurado nas janelas. Desde os anos 30 do século passado, quando a Coca-Cola o converteu em garoto-propaganda, Papai Noel consolidou-se como o grande símbolo do Natal, festa religiosa que o capitalismo transformou em festa do consumo.
Ele vem cada vez mais cedo. Começa a dar sinais no final de outubro, às vezes antes, e só vai embora no ano que vem. Com ele chegam as renas, animais alienígenas que o transportam entre pinheiros cobertos de neve – falsa, é claro, porque se a verdadeira está se rarefazendo até no Polo Norte, imaginem aqui nos trópicos.
Mas a maior façanha de Papai Noel, no Brasil e no mundo ocidental-capitalista, tem sido a de ocupar o lugar de Jesus Cristo, que, por convenção religiosa, seria o aniversariante de 25 de dezembro. Mas não há na História comprovação desse dado. O imperador romano Constantino, que governou entre os anos 306 e 337, estabeleceu o cristianismo como religião oficial do império e aproveitou a data da grande festa solar, o solstício de inverno, quando os dias começam a se tornar mais longos que a noite, para fixar a comemoração de Natal. Assim o culto cristão se apoderou de um culto pagão, o que tende a se reverter nos tempos atuais.
O consumismo exacerbado não se restringe ao Natal, mas é nessa época que se exibe sem qualquer resquício de pejo. Enquanto a miséria e as desigualdades sociais se aprofundam, aquele um por cento da população brasileira que possui mais reservas em dinheiro que os 90% mais pobres se esbalda. Dezembro é tempo de maior oferta de mercadorias, de bens de consumo, de dinheiro em circulação, de novidades no mercado. E de ostentação de riqueza.
Segundo o estudo “A nova era de crescimento do mercado de luxo”, divulgado pela consultoria Bain & Company, 114 mil brasileiros têm 1 milhão de dólares em ativos líquidos, e 1,2 milhão de brasileiros têm mais de 100 mil dólares em ativos líquidos. Essa elite da elite acumula riqueza equivalente a um terço do PIB brasileiro, ou R$ 3,5 trilhões, e consome, sem precisar fazer contas, moda, imóveis, carros de luxo, aeronaves privadas, iates, bebidas finas. Por isso o Natal é sempre tempo de otimismo para o mercado.
Moda e itens pessoais estão no topo da preferência desses consumidores de alto luxo. Relógios e joias em primeiro lugar, com 27% do total. Grande parte do ouro que compõe esses itens vem do garimpo ilegal que destrói a Amazônia, contribuindo para as alterações climáticas que provocam catástrofes ambientais. E é bom lembrar que as grandes vítimas das tragédias são sempre os mais pobres.
O calor continuará aumentando, mas nem o Papai Noel, que veio do Polo Norte para faturar por aqui, nem nossas elites, que vão esquiar na Suíça, estão muito preocupados. Por enquanto, o dinheiro compra qualquer coisa, até a ilusão de uma felicidade que jamais terá fim.
ALEXANDRE MARINO, escritor e jornalista em Brasília/ DF, escreve quinzenalmente às sextas nesta coluna