Opinião

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17 de novembro de 2023

ALEXANDRE MARINO

O Enem e a liberdade de pensar

Cerca de 2 milhões e 700 mil estudantes fizeram as provas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), em busca de um lugar para prosseguir seus estudos em alguma universidade brasileira. Ao se preparar para essas provas, eles precisam ficar antenados nos acontecimentos no Brasil e no mundo, que fazem parte das questões que terão que elucidar. Ao tomar conhecimento, inevitavelmente se posicionam com senso crítico. Talvez seja este o pavor da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), que pressiona o governo para anular três questões da prova.

A função institucional de deputados e senadores é representar o cidadão, fazer leis e fiscalizar o governo. De acordo com o site oficial da entidade, a FPA é formada por 324 deputados, do total de 513, e 50 senadores, do total de 81. Como se vê, a maioria de uma casa e outra é formada por representantes do chamado agronegócio.

Eles não defendem os interesses do cidadão comum e muito menos dos pequenos produtores, mas apenas os dos grandes empresários do setor, que se consideram “o pilar da economia brasileira, formador de mão de obra, gerador de riqueza, renda e desenvolvimento”, como declarou um dos deputados do grupo. Na verdade, os interesses defendidos no Congresso são quase sempre os dos mais ricos, como a isenção de impostos sobre as grandes fortunas.

O Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea) prevê que a participação do agronegócio na economia fique em torno de 24,5% do PIB em 2023, índice de fato significativo. Os empresários do setor, vários deles integrantes da lista dos maiores bilionários do Brasil, tradicionalmente divulgada pela revista Forbes, donos de muito poder e potencial eleitoral, não se intimidam de passar o trator sobre os entraves aos seus negócios. E se julgam inatacáveis, como se percebe no caso da prova do Enem.

Com o trator ligado, os deputados da frente aguardam o comparecimento do ministro da Educação, Camilo Santana, à Câmara, para explicar as três questões do Enem. A primeira, a 70, tem em seu enunciado trecho de um texto de A. U. Oliveira, que afirma: “…A lógica que gera o desmatamento [da Amazônia] está articulada pelo tripé grileiros, madeireiros e pecuaristas.”

Para responder à pergunta, o estudante deve interpretar corretamente o texto, e não necessariamente concordar com ele. É o caso, também, da questão 89, que exige a correta interpretação do trecho de um artigo sobre os reflexos do crescimento do agronegócio no Cerrado.

A outra questão que pretendem anular, a 71, nada tem a ver com o agro: trata da corrida espacial promovida por bilionários. A explicação é que os ruralistas não gostaram da charge que ilustra a pergunta, em que se vê um indígena recomendando a um extraterrestre que “não confie nesse pessoal”. Será que os bilionários do agro estão pensando em plantar soja em Marte, depois que a Terra estiver desertificada?

A questão 71 do Enem reforça a ideia de que os indígenas são os grandes inimigos que o agro elegeu para si. A preservação de nossas florestas, e com elas os rios e a água, depende dos indígenas. Isso seria um entrave para o agro, que avança com tratores, bois e agrotóxicos sobre toda terra possível. Não é à toa que tentam impor a tese do marco temporal para a questão da demarcação de terras indígenas, fingindo ignorar que ela já foi declarada inconstitucional pelo Supremo.

O Brasil detém a maior desigualdade social do mundo, em que 1% dos mais ricos concentram 30% da renda nacional e mais reservas acumuladas que os 90% mais pobres, e 1% dos donos de terras concentram 50% das terras cultiváveis do país. Enquanto isso, 16 milhões de pessoas se espremem nas 11.403 favelas brasileiras, segundo o Censo 2022. O resultado dessa desigualdade é nossa legião de 30 milhões de famintos, que cresce na contramão da produção do agronegócio.

A concentração também atinge a água. O agronegócio consome 1,7 trilhão de litros por ano. Somado ao setor sucroalcooleiro (1,2 trilhão) e papel e celulose (980 bilhões), são quase 3 trilhões de litros, ou 30% da água disponível no Brasil. É por isso que cada um de nós tem que fechar a torneira ao escovar os dentes.

Os 156 milhões de toneladas de soja produzidos em 2022-2023 fazem do país o maior produtor global do produto, mas essa soja não é alimento nem para o Brasil, muito menos para o mundo, onde é destinada ao consumo de animais. O agronegócio produz commodities (bens primários em estado bruto), que alimentam a conta bancária de bilionários, mas não são comida na mesa de quem precisa.

E a expansão inevitável da produção (de acordo com a lógica capitalista) desestimula a produção dos verdadeiros alimentos, como arroz e feijão, que depende unicamente dos pequenos agricultores, os verdadeiros produtores de alimentos no Brasil.

A destruição dos nossos principais biomas, Amazônia, Cerrado e Mata Atlântica, contribui para o aquecimento global e provoca alterações no clima. Calor excessivo, furacões, enchentes, secas, fortes tempestades se tornam fenômenos corriqueiros. Florestas sem árvores, rios sem água, mesas sem alimentos. Sem liberdade de pensamento, seríamos um país sem saídas.

ALEXANDRE MARINO, escritor e jornalista em Brasília/ DF, escreve quinzenalmente às sextas nesta coluna