Opinião

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9 de novembro de 2023

ALBERTO CALIXTO MATTAR FILHO

De volta a Thomas Mann

Muitas vezes, costumamos ler somente um livro de um escritor. Talvez não tenha nos despertado desejos de ir além. Mas o ideal é conhecer sempre mais o que alguém escreveu. Assim o fiz com vários. Era penetrar uma obra e partir para outras.

Nos últimos três anos, finalmente fui ao encontro de Thomas Mann. Desde lá, foram quatro obras: os calhamaços “A montanha mágica” e “Os Buddenbrook”, ambos com mais de 800 páginas, e as rápidas novelas “A morte em Veneza” e “Tonio Kröger”, que não chegam a 100, mas tão ricas quanto os romances.

Como em qualquer ofício, estabelecer quem alcança o melhor desempenho nunca foi fácil. É preciso haver critérios claros que possam servir de baliza para a análise. Mas afirmo que Thomas Mann está entre os maiores. Os cânones literários o reconhecem, aliás.

Sua capacidade de transmitir as várias faces do conhecimento ou dos caminhos diversos para buscá-lo é absolutamente genial. Ali estão pensamentos sobre a vida e a morte, a capacidade artística e o senso comum, a ciência e o espírito, o corpo e o sentimento, a integração e o isolamento, a fé e a descrença, Deus e o diabo, a busca dos ideais e a inércia, a saúde e a doença.

Thomas Mann é, pois, um dos mestres dos antagonismos e escreve sobre a multiplicidade das diferenças, dos paradoxos e também das opções a seguir. Ele nos faz refletir de uma forma extraordinária sobre as possibilidades.

Como pretendo iniciar outro de seus grandes clássicos, “Doutor Fausto”, reli dois ensaios que o abordam com mais vigor. É que Thomas Mann exige entrega absoluta, tamanha o brilhantismo do que ele apresenta em termos de enredos e personagens.
Os textos foram escritos há algumas décadas e fornecem muitas luzes para compreender a vida e a obra desse monstro da literatura. É comum que se indague até onde ambas se relacionam para qualquer escritor, mas talvez não haja romances tão autobiográficos como os de Thomas Mann. Referidos estudos defendem a tese.

Lembre-se de que ele nasce de uma tradicional família do norte da Alemanha, em 1875, com ascendência mista. Embora filho de um comerciante e político germânico, a mãe era a brasileira Júlia da Silva Brunns, fato que lhe teria propiciado enorme senso para retratar a diversidade e a alienação em suas obras, segundo os ensaístas.

Portador desse talento excepcional, ele nos traz, portanto, toda a situação ambivalente que se pode notar em ‘A montanha mágica”, quando se inter-relacionam várias circunstâncias contrastantes em um sanatório para tuberculosos nos Alpes Suíços. O que era para ser mero tratamento de uma doença se transforma em rompimentos de regras que levam ao prazer sem compromissos futuros.

O que era para ser um período para o retorno à vida comum transborda para a existência sem obstáculos. O que podia ser um passo para o adiamento da morte deságua na explosão de prazeres, paixões e ironias, com mudanças na percepção do tempo.

Já em “Os Buddenbrook”, ele narra a saga por que passam gerações de uma tradicional família de comerciantes germânicos entre o apogeu e o declínio, a religiosidade e o ceticismo, os nascimentos e os fins, tudo sob vários ângulos para compreender condutas que se sucedem e divergem de geração para geração.

Em “A morte em Veneza”, lá está um escritor que se isola na cidade italiana em busca de inspiração para continuar escrevendo. Assim como em Tonio Kröger, surgem as reflexões sobre a arte e o artista em seus dilemas de integração e isolamento, ou entre a expansão das sensações de criar e os inevitáveis limites do mundo real, entre a arte e a vida comum.
Onde se situa o artista? O escritor? O que fazer para elaborar em si o oceano de criações? Como se enquadrar no universo que pertence a todos? Como se integrar a uma realidade quase sempre repleta de empecilhos? Um artista ou um simples homem? São questões dessa natureza que se extraem da obra de Thomas Mann.
Por certo, não há respostas definitivas. A literatura, assim como a filosofia, embora sob estética diferente, oferece controvérsias, insufla o pensamento, amplia raciocínios e desenvolve a linguagem, mas não possui o dever de apresentar soluções.
Que venha então o “Doutor Fausto”, este seu romance final, mais uma obra-prima em que todos os grandes conflitos que ocorrem nos outros romances resultam também em enorme drama. Talvez o maior, pelo contexto.
Trata-se de uma recriação de “Fausto”, de Goethe, escrito mais de um século antes do seu e em cujo núcleo os paradoxos entre as vidas terrena e espiritual foram excepcionalmente bem construídos.
“Pode-se falar de Deus sem falar do diabo, do bem sem presumir o mal?” (trecho de um dos ensaios)
Em todo caso, não há maniqueísmo. Há, sim, a mais vasta exploração das ideias com magnitude. Thomas Mann jamais se esgota.

ALBERTO CALIXTO MATTAR FILHO escreve quinzenalmente, às quintas, nesta coluna (mattaralberto@terra.com.br)