Opinião

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20 de outubro de 2023

Alexandre Marino

Não por ser exótico

Em 1987, no plenário da Câmara dos Deputados, um jovem de 34 anos, trajando impecável terno branco, pintava o rosto com tinta de jenipapo enquanto discursava aos parlamentares da Assembleia Nacional Constituinte. A Constituição, promulgada um ano depois, seria a primeira da História a conter um capítulo em defesa dos direitos dos povos indígenas, e aquele jovem, Aílton Krenak, seria um dos responsáveis por essa conquista. Agora, 36 anos depois, Krenak prepara-se para entrar no Salão Nobre da Academia Brasileira de Letras (ABL) para tomar posse da Cadeira nº 5, para a qual foi eleito no início deste mês como o primeiro indígena a fazer parte da entidade.

O ideário de Aílton Krenak enriquecerá o debate na Academia e ao redor dela, e parece já reforçar a relevância da instituição, por representar uma aposta na diversidade reivindicada pelos movimentos sociais. Ativista da causa indígena desde os anos 1980, Krenak sempre teve intensa atuação na defesa dos direitos dos povos originários, como a União dos Povos Indígenas e a Aliança dos Povos da Floresta, criadas naquela época com sua participação.

Seu histórico discurso na Assembleia Constituinte o tornou conhecido, mas seu prestígio nacional foi reforçado com a publicação recente de três pequenos livros em que suas ideias sobre a civilização, a economia, o capitalismo, o meio ambiente e o futuro da humanidade são colocadas de forma límpida, ao alcance do leitor médio: “Ideias para adiar o fim do mundo” (2019), “A vida não é útil” (2020) e “Futuro ancestral” (2022), todos publicados pela Companhia das Letras.

Alguns de seus livros tiveram tradução para línguas como inglês, francês, espanhol, italiano e alemão. Suas ideias já lhe renderam títulos de Doutor Honoris Causa pelas universidades Federal de Juiz de Fora (2016) e de Brasília (2021) e o Troféu Juca Pato de Intelectual do Ano (2020), concedido pela União Brasileira de Escritores. Ele também é membro da Academia Mineira de Letras, eleito em junho do ano passado.

“Nenhum dos senhores poderia apontar atos, atitudes da gente indígena do Brasil que colocaram em risco, seja a vida, seja o patrimônio de qualquer pessoa, de qualquer grupo humano neste país”, discursou ele no plenário da Câmara. “Hoje somos alvo de uma agressão que pretende atingir, na essência, a nossa fé, a nossa confiança. (…) O povo indígena tem regado com sangue cada hectare dos oito milhões de quilômetros quadrados do Brasil.”

A Constituição reconheceu os direitos dos povos indígenas, mas o crime organizado, a mineração, o agronegócio e empresários gananciosos, todos atualmente bem representados no Congresso Nacional, elegeram os indígenas como seus inimigos, e continuam empenhados em fragilizar sua defesa. Aílton Krenak, ao combater a exploração predatória da terra, o consumo desenfreado e a destruição da natureza, mostra que os povos originários são fundamentais para a preservação da vida.

Nascido há 70 anos em Itabirinha, região do Vale do Rio Doce em Minas Gerais, Krenak é crítico ferrenho do capitalismo, do consumismo, do conceito de “progresso” e do distanciamento entre o homem e a natureza. As respostas do planeta à ação predatória da humanidade são evidentes, e se tornam mais nítidas e compreensíveis à luz da interpretação de Aílton Krenak.

Ele contesta a ideia de que a água, as árvores e a terra são “recursos a explorar”, por ver esses elementos como seres vivos dotados de personalidade e sentido. “O homem está extinguindo as condições materiais de vida. Está acabando com a água, a vegetação e o solo, com esse papo furado de desenvolvimento.” Krenak entende que o desejo egoísta de dominar o outro leva o homem à perda da memória ancestral. Para ele, submeter as crianças ao atual modelo de educação é ofender a liberdade de pensamento, “é tomar um ser humano que acabou de chegar, chapá-lo de ideias e soltá-lo para destruir o mundo”.

A ABL, fundada em 1897 sob a presidência de Machado de Assis, tem ido além de sua missão de promover a cultura da língua e da literatura nacionais, conforme consta nos estatutos. Formada por 40 membros, reúne escritores, diplomatas, jornalistas, economistas, juristas e ex-presidentes da República.

Krenak se reunirá ao músico Gilberto Gil, aos jornalistas Merval Pereira (que atualmente exerce a presidência) e Ruy Castro, à atriz Fernanda Montenegro, aos poetas Marco Lucchesi, Antonio Carlos Secchin e Antonio Cícero, aos romancistas Antônio Torres e João Almino e ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, entre outros.

Krenak aprofundará o debate nesse ambiente de pensadores. O que ele propõe diante dos dilemas que o mundo civilizado enfrenta hoje é uma profunda quebra de paradigmas. Aponta o dedo para a exploração predatória das riquezas naturais, a superprodução de lixo, a destruição dos rios, florestas e montanhas, o caos gerado pela urbanização, a tecnologia que nos transforma em meros espectadores de tudo e faz da vida algo dispensável – e mostra que é preciso passar uma borracha em nossas crenças, se quisermos adiar o fim do mundo.

ALEXANDRE MARINO, escritor e jornalista em Brasília/ DF, escreve quinzenalmente às sextas nesta coluna