ALBERTO CALIXTO MATTAR FILHO
Lembrança de um clássico de Oliver Sacks
De alguma forma, devo estar como Kafka, que dizia que “tudo que não é literatura me aborrece”. Ironias à parte, lembrei-me de um texto cá escrito e publicado por mim no já longínquo 25 de maio de 2002 sobre “Um antropólogo em Marte”, do neurologista e escritor inglês Oliver Saks, que morreu em 30 de agosto de 2015, aos 82 anos.
Digamos que Saks tenha feito literatura com base nas experiências reais com que teve de lidar. Literatura de testemunho.
Além de estudioso dos problemas neurológicos, Oliver Saks era um sujeito brilhante, inquieto e que nutria paixão pela escrita, pois publicou vários livros, utilizando exemplos dos tratamentos que exerceu com inúmeros pacientes para construir histórias em que a esperança e o desejo de viver jamais deixaram de existir. Mesmo em situações dramáticas, a vida sempre renascia.
Na época gostei tanto de “Um antropólogo em Marte”, que, muitos anos depois, selecionei o texto que havia escrito para inseri-lo na edição do meu primeiro livro. Dei-lhe o título de “Uma viagem ao cérebro humano”, tão repleta de mensagens é a obra.
Uma viagem ao cérebro humano é exatamente a expressão ideal para o que faz Oliver Sacks, porque ele narra, com profundidade, sete de suas experiências clínicas. Quando tudo parece perdido, eis que surgem as alternativas e as possibilidades de recuperação diante do estado de desespero de pacientes e familiares causado por certas doenças.
Eu a adquiri por ter lido a matéria que a abordava no caderno “Mais”, da “Folha de São Paulo”, durante aqueles anos. Para quem não conhece Saks, a maior referência é o filme “Tempo de Despertar” (1990), oriundo de seu livro do mesmo nome, que escrevera em 1974. A adaptação para as telas veio com o extraordinário de Robert De Niro, o protagonista vítima de autismo que, aos poucos, começa a demonstrar evolução. Emocionante.
Muitas vezes nos indagamos sobre a natureza das doenças e o caráter devastador de muitas. Os males de que trata Sacks, todavia, não são tão destruidores assim. São doenças específicas, cujas causas repousam em fatores neurológicos diversos. Embora graves, não deixam, segundo o que se nota no livro, de trazer alguns caminhos para os atingidos.
Daltonismo, cegueira, síndrome de Touret (a dos tiques nervosos compulsivos), doenças da memória e autismo são, assim, os campos em que o médico-escritor expõe um grande conhecimento, não apenas por meio da abordagem clínica, mas também e, sobretudo, da humana.
Ele não somente investiga as causas neurológicas dos referidos males, como ainda empreende profunda incursão à vida íntima dos pacientes, tudo em busca de melhor compreender os seus estados patológicos para poder ajudá-los sempre além.
Assim, todos os casos descritos não descambam para o aniquilamento da vida. Ao contrário, transformam-se em impulso para um novo viver, ou seja, uma nova realidade para o exercício de talentos e vivência de prazeres.
Um pintor que, aos 65 anos, vítima de acidente, se torna daltônico, passa a pintar muito bem em preto e branco. Autistas passam a desenhar e pintar de modo criativo. Aliás, uma professora autista escreve a própria autobiografia. Já um exímio cirurgião se safa dos tiques nervosos e, mais inesperado ainda, um indivíduo que perdera a visão aos 5 anos e a recupera 40 anos depois não se adapta ao ato de enxergar, o que lhe torna preferível o mundo da cegueira.
Percebe-se, enfim, que os pacientes se recriam dentro da patologia que os vitimava. Como o próprio autor diz: “Não apenas por causa das doenças e, até mesmo, em razão disso.” Tudo muito surpreendente.
O fato é que, mesmo que se realizem todos milhares de estudos sobre os meandros da vida, os mistérios continuarão existindo. Mas a sede de desvendá-los nos move em busca de respostas e sempre pode trazer outras soluções. Pois é isso o que ocorre em “Um antropólogo em Marte”.
A obra apresenta, portanto, supostas fraquezas ou limitações existenciais, mas, ao mesmo tempo, estimula intensamente a reflexão sobre as doenças e demonstra como é misteriosa e rica a natureza humana, a ponto de extrair de tais estados novas identidades, novos mundos, outros alcances.
Oliver Sacks, ao que parece, tenta repousar seus dilemas na simbiose entre neurologia e literatura. Com base nas experiências clínicas que tanto exerceu, consegue trazer aos olhos dos leitores boa parte de nossos conflitos e anseios de realização. E com muito êxito, acrescente-se.
ALBERTO CALIXTO MATTAR FILHO escreve quinzenalmente, às quintas, nesta coluna (mattaralberto@terra.com.br)