Opinião

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9 de setembro de 2023

ALEXANDRE MARINO

Uma semente de esperança

Cerca de 24 mil pessoas acompanharam as 96 atrações artísticas, literárias e musicais do Festival Literário Internacional de Paracatu, o Fliparacatu, realizado entre os dias 23 e 27 de agosto, uma verdadeira festa cultural que deixa marcas profundas na cidade mineira. Setenta escritores foram convidados a participar, entre os quais este colunista, que se reuniu a grandes nomes nacionais e internacionais, entre eles o moçambicano Mia Couto, o português José-Manuel Diogo e brasileiros como Conceição Evaristo, Itamar Vieira Junior, Miriam Leitão e Nádia Gotlib.

O tema geral do festival foi “Arte, cultura e ancestralidade”, bastante oportuno para uma cidade cuja população é predominantemente negra ou parda, e onde existem cinco comunidades quilombolas preservadas, reconhecidas pela Fundação Cultural Palmares. Tratar deste tema foi como trazer para o presente a população que lá viveu desde o início do século 18, quando surgiu o arraial por onde passavam os tropeiros que transportavam ouro entre Goiás e Minas Gerais.

Conceição Evaristo, homenageada do festival ao lado de Mia Couto, emocionou-se ao visitar um quilombo e identificar situações que remetiam ao seu próprio passado, de filha de família humilde e ex-empregada doméstica.

Paracatu não é uma cidadezinha perdida no interior do Brasil. Com 94 mil habitantes, é a 340ª em população, entre 5.570 municípios, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Seu centro histórico é protegido por lei municipal, e 230 imóveis são tombados pelo Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), o que lhe confere uma identidade preservada, ao contrário de grande parte das cidades brasileiras de porte semelhante, que não valorizam sua memória e perdem suas características. A iniciativa da prefeitura da cidade, que convidou o jornalista, escritor e gestor cultural Afonso Borges, de Belo Horizonte, para organizar o festival, foi coberta de êxito.

Falamos de poesia, de cultura, de passado e de futuro, nos palcos, nas mesas de debate, nas conversas informais. Educação, meio ambiente, racismo, reconstrução da democracia foram temas recorrentes. Os eventos do festival foram realizados em vários locais do centro histórico, mas os mais importantes foram o Centro Pastoral São Benedito e a Igreja do Rosário dos Pretos, onde o padre Hilton Rodrigues Santana, em atitude ecumênica, deixou de celebrar algumas missas para abrir espaço à troca de ideias sobre a construção de um país mais justo. Mas alguns religiosos da cidade protestaram, via redes sociais. Por ironia, a História conta que a Igreja do Rosário foi construída por negros alforriados, proibidos de frequentar a Matriz de Santo Antônio.

Um dos eventos mais importantes do Fliparacatu foi a premiação dos estudantes das 26 escolas do município que aderiram ao festival e participaram do Concurso de Redação. Crianças de 4 a 8 anos fizeram desenhos e jovens até 18 anos redigiram textos sobre o mesmo tema do festival, inspirados pelas obras do pintor Candido Portinari que, reproduzidas digitalmente, compuseram a exposição “Portinari Negro”. A mostra, montada na praça em frente à Matriz de Santo Antônio, tombada pelo Iphan, reuniu 42 obras que retratam trabalhadores negros e atraiu grande número de visitantes.

“Vou me esforçar muito, entrar na faculdade, ter um bom emprego, e pretendo escrever um livro”, disse Rodrigo Tibério da Cruz, segundo colocado na categoria 9 a 11 anos.

Outras crianças fizeram declarações parecidas, revelando consciência histórica e social. Escrever um livro é um projeto complexo e transformador, porque exige reflexão, senso crítico, organização de ideias e domínio do idioma. Se um festival literário está despertando esse desejo nas crianças, certamente cumpre importante papel cultural e deixa marcas para o futuro.

Essa foi a valiosa contribuição do Fliparacatu para a sociedade, não só para as crianças. Oito mil pessoas tiraram ingressos antecipados para comparecer às mesas e ouvir reflexões de palestrantes de alto nível, sobre assuntos da maior importância.

Uma equipe de 100 pessoas atuou nos bastidores, cumprindo 10 mil horas trabalhadas. O festival foi patrocinado pela mineradora Kinross, que explora ouro no município e causa transtornos a parte da população, mas dessa forma reverte ao menos em parte o mal que sua atividade inevitavelmente provoca.

O patrocínio se deu por intermédio da Lei de Incentivo à Cultura, mais conhecida como Lei Rouanet, vítima de ataques depreciativos e redução de recursos durante o trágico período de governo fascista, mas que agora é reativada e até remodelada para ganhar mais alcance. Em 31 anos de existência, a Lei Rouanet tornou-se importante ferramenta de desenvolvimento econômico. O setor cultural movimenta 3,11% do Produto Interno Bruto (PIB) e emprega 7,5 milhões de trabalhadores.

Como disse o secretário de Economia Criativa do Ministério da Cultura, Henilton Menezes, todos os setores econômicos precisam do apoio do governo, e o acesso à cultura é um direito de todos os brasileiros, garantido pelo Artigo 215 da Constituição.
Festivais literários, que proliferam pelo Brasil graças à iniciativa de gestores com visão de futuro, são uma semente de esperança para um país mais unido e mais justo.

ALEXANDRE MARINO, escritor e jornalista em Brasília/ DF, escreve quinzenalmente às sextas nesta coluna