ALBERTO CALIXTO MATTAR FILHO
Aromas do livro
Há quase duas décadas, num começo de tarde de domingo, eu caminhava pela Avenida Paulista, no entorno do Masp, e observava o acúmulo de gente pelas calçadas, muitos apresentando seus trabalhos às inúmeras pessoas que que percorriam aquele trajeto. Multidão.
Como normalmente ocorre em grandes cidades que possibilitam um enorme afluxo de gente por pontos tradicionais, era possível notar de tudo um pouco: ambulantes vendendo bebidas e petiscos, pintores oferecendo seus quadros, músicos tocando instrumentos com uma pequena caixa ao solo para receber as parcas recompensas, artesãos com suas criações e por aí vai.
Num determinado momento do frenético ir e vir, um sujeito de uns 30 anos e de barbas longas, pele clara e nariz afilado abordava as pessoas com o intuito de oferecer nada mais, nada menos que um pequeno livro de poesias que havia escrito.
O livro era de pouca extensão − até bem simples −, mas, nas 89 páginas, continha vários poemas que se apresentavam tanto em português, quanto em espanhol. Lado a lado. Por certo, uma forma de propiciar a expansão da obra além fronteiras aos irmãos latino-americanos.
Na orelha, lá estava uma espécie de apresentação bastante elogiosa de Lucinea Aparecida de Rezende. Logo na segunda página, apareciam todos os registros formais de qualquer publicação, além dos agradecimentos do autor. Seu nome: André R. Marques. O título; Imagem.
Na realidade, o que me chamou a atenção naquele grande universo de indivíduos de toda natureza pelas calçadas e até pela própria rua lembre-se de que o tráfego de veículos na Avenida Paulista costuma ficar impedido aos domingos − era a absoluta necessidade de todos em oferecer ou divulgar suas criações.
Talvez os domingos fossem a grande chance para tal anseio. Num dos instantes aleatórios fui então abordado pelo André R. Marques, que, eloquente, mas com o tom do equilíbrio e da elegância, alçou Imagem a minhas mãos na esperança de que eu o adquirisse.
Pois bem, li a apresentação e alguns dos poemas. Gostei. Ainda leio muito mais prosa do que poesia. De fato, sou da prosa, mas confesso que admirei a intensidade daqueles versos. Com poucas palavras, acarretavam imagens, impulsionavam a imaginação e faziam jus ao título Senti a harmonia.
No entanto, mesmo que eu não chegasse a me envolver com o que estava escrito, André R. Marques me sensibilizou. Ali estava um escritor fora dos modelos, invólucros, produções e solenidades. Ele apenas almejava se dirigir às pessoas para ofertar o que havia criado.
Sim, ali estava um escritor sem grande fama pelas ruas, tanto como qualquer um daqueles artistas populares que por lá se movimentavam com o mesmo objetivo de vender as obras que lhe surgiram do talento ou da absoluta necessidade de expressão.
Adquiri, pois, o livro, e André ficou muito grato. Até hoje tento entender o texto da dedicatória, embora perceba que as tintas da caneta simbolizam sua alma.
Eis a essência: um escritor, um músico, um artesão, um pintor, seja qualquer um que cria trabalhos dessa natureza precisa apresentar o que faz ao público. Um livro, um quadro, uma música seriam incompletos ou frustrantes sem a receptividade das pessoas.
Pois da mesma forma que André R. Marques foi grato a mim décadas atrás, sou também muito grato a quem pôde estar presente no lançamento do segundo volume do meu livro, Livros, volume 2. Da mesma forma, sou grato a todos os integrantes da equipe de apoio. Confesso que foi uma noite maravilhosa. E muitos costumam me procurar após o evento. Os aromas sempre perduram
A literatura, assim como outras atividades artísticas ou não, também precisa de apoio, de divulgação. A verdadeira literatura fortalece a capacidade linguística, o talento para a escrita, a cultura geral e pode ampliar os níveis de compreensão da vida.
Como já disse, a literatura nos leva aos séculos de Shakespeare, Dostoiévski, Thomas Mann, Graciliano, Machado, Guimarães, Rachel, Clarice, Vieira, Kafka, Camões, Cervantes e outros, mas em todos ali estão os amores, os prazeres e os conflitos eternos e essencialmente humanos, sem limitações de tempo e espaço.
Surge-me, aliás, um pensamento profundo do escritor argentino Ernesto Sábato, durante uma entrevista que ele concedeu ao Jô Soares e que jamais me fugiu da memória. Mais ou menos assim: indiscutível que as circunstâncias mudam, mas o coração humano é sempre o mesmo.
Esse coração simbólico tão bem mencionado pelas palavras de Ernesto Sábato está nas páginas dos livros. Nossa alma, nosso íntimo, nosso âmago pertencem à literatura.
“ Nada me vale hoje / pensamentos incessantes / se, nesta correria pós-moderna / de minha caneta desvairada / eu não me der a oportunidade / de parar / e, pausadamente, / sobreviver. (André R. Marques)
ALBERTO CALIXTO MATTAR FILHO escreve quinzenalmente, às quintas, nesta coluna (mattaralberto@terra.com.br)