LUIZ GONZAGA FENELON NEGRINHO
O ofício e alquebrados ossos
Numa Vara do Trabalho, a popular Justiça do Trabalho, as reclamações de natureza trabalhista se sucedem. E casos há que sensibilizam. Ao contrário do que falam e apregoam, não é só o trabalhador que tem direitos resguardados. Não é bem assim. Fatores devem ser considerados e levados em conta. Como o de que quem paga mal ou negligencia o acerto, no exemplo a não coleta de recibos, vai inserir-se no rol de que quem paga mal paga duas vezes ou até mais. Veja-se o presente caso – como outro qualquer – desses que implicam gratidão ou ingratidão. Ensaio a que se reflita no seu conjunto.
Tendo aprendido o ofício de mecânico numa pequena e tradicional oficina da cidade, logo após ser dispensado, o jovem resolve ingressar na justiça trabalhista para pleitear seus direitos junto ao empregador, depois deste se afundar em dívidas impagáveis e minguar seu ganha-pão de mais de 50 anos, obrigando-se a ter que demitir seu único empregado. Absoluta impossibilidade financeira acertou parte dos direitos trabalhistas de seu colaborador.
Nada há de errado para quem busca o manto sagrado da justiça do trabalho para requerer o que chamam de “tempo de casa”. Como diz o ditado: “a cada um o seu”. A indenização deve ser repassada a quem de direito. No presente caso, o agora oficial em mecânica de autos contratou um bom advogado da área e mandou ver. Queria receber tudo a que julgara tinha por direito.
No dia da audiência, tentativa de conciliação, aparece o empregador. Macacão velho, bem surrado, toma assento na cadeira, defronte ao reclamante e o advogado deste. Figura esquálida consumida pelos anos de muitas janelas e estradas da vida, boné surrado, rasgado e sujo à mão, estranhou o ambiente, mais perdido que cachorro de desvalido em dia de mudança. Cheirava a graxa, óleo diesel, gasolina… Compostos derivados do petróleo, usados em oficina mecânica.
Recebeu de pronto uma bronca do Juiz Federal – todo engomadinho, cheiroso, a bordo de um terno bem talhado – por não se sentar direito, em prol do decoro do Palácio da Justiça. Mais do que nunca e ninguém, data vênia, o magistrado deve ter a sensibilidade adequada e entender a natureza humana, a dignidade e os ossos do ofício. Falou em tom ríspido e professoral:
– O senhor podia respeitar as dependências da Justiça do Trabalho e vestir-se de acordo!
Sem jeito e nenhum argumento para tanto:
– Sim, senhor, desculpe. Só ando assim. A outra roupa é pra ir aos domingos na igreja com a patroa– respondeu.
No início dos trabalhos, o juiz perguntou se as partes tinham acordo [assim chamados patrão e empregado]. Se havia possibilidade de composição, jargão utilizado no Direito do Trabalho. Não obtendo resposta, o magistrado dirigiu-se ao empregador, ora reclamado, se tinha trazido defesa por escrito e documentos para juntar ao processo, para opor resistência ao que o reclamante pleiteara. Soma muito alta, diga-se de passagem.
Deslizando-se num português simples, mas com convicção, o velho mecânico assim falou, e, curioso, não fora interrompido em momento algum pelo juiz: — Não, doutor. Não trouxe defesa e nem posso pagar advogado para me defender. Ao longo dos 12 anos que esse jovem ficou na oficina, paguei o que achei que devia, não peguei um único recibo. Minha intenção era fazer dele um homem, um filho na verdade, já que o meu – único filho – morreu num acidente de carro há mais de 15 anos.
E continuou:
–Triste sorte a minha. Trabalhando apenas para sobreviver com honestidade, salário mínimo de aposentadoria, mal dá para os remédios, mais recuperando do que trocando peças… O muito que consegui foi uma casa simples, financiada na Caixa, ao lado fica minha oficina. Tenho minhas ferramentas e uma insuportável dor nas costas de tanto abaixar e levantar para consertar carros. Também tenho um fusquinha velho, para dar assistência técnica. E uma mulher e um cão pra tratar.
Sem tirar o pé do acelerador de um fusquinha 1200, 6 volts:
–Acho, acertei o que devia. Não posso afirmar. Não entendo de lei. Pagar o que pede não posso. Mas posso dar o fusquinha, as ferramentas, entrego a oficina. Sei que isso não vale muito. Existe muito fiado por aí, passo as contas pra ele receber; dou o que puder; menos a casa que não é minha e a dor nas costas que adquiri com o peso da idade e do ofício.
E foi mais fundo:
– Com a graça de Deus, quem sabe, posso começar tudo de novo, com mais um concorrente na praça. Melhor sorte a desse jovem. Aprendeu comigo o básico e sabe muitas coisas modernas. Com razão, vai ficar com boa parte dos meus clientes. Afinal, é bom mecânico, sabe trabalhar, entende dessas coisas de computador, de internet. Eu não entendo nada disso, tudo na base do arroz com feijão.
Por fim, valendo-se do direito oral de defesa, arrematou:
– Fazer o quê, velho e sem forças, o dinheiro acabou. Posso é desejar o melhor a esse rapaz e dar a ele minha bênção, os votos de sucesso na profissão. É tudo o que tenho a falar, doutor juiz.
Após a fala espontânea, nascida e brotada da alma pura e contrita de um homem simples, modesto e valente, reinou-se na sala de audiências um longo e perturbador silêncio.
Antes que o meritíssimo juiz proferisse palavras de ordem, como que melancólica canção, ouviu-se angustiante soluço provindo da alma de um moço de 25 anos de idade. Supostamente, a inspiração súbita fora como que um gesto de reconhecimento e gratidão a tempo e modo.
Naquele instante, lavrou-se o chamado arrependimento eficaz. O autor da ação levantou-se, e, sem nenhuma explicação, deixou a sala. Não se tem notícia, até os dias de hoje, do prosseguimento da ação trabalhista.
No sentir de tantos quantos, sentimentos se valeram.
PS: Para o amigo Umberto Campos Filho (Beto Campos) – em memória – fiel assinante da Folha da Manhã. Fidelidade a toda prova, estampara cópia desse singelo texto, publicado neste espaço faz muitos anos, numa moldura em sua oficina, bem antes de sua despedida desta vida.
Betão e sua fiel Guarani dividiram espaço por bons tempos na Auto Elétrica Campos, na altura do trevo de Passos (MG-050), onde, ao fundo, havia um pé de romã, também conhecida na espécie por romãzeira. Não poucas vezes nos reunimos em fins de tarde para saudar a quietação do tempo. Saudade.
Luiz Gonzaga Fenelon Negrinho, advogado, escreve aos domingos nesta coluna. (luizgfnegrinho@gmail.com)