Opinião

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11 de agosto de 2023

Alexandre Marino

Pecados sem culpa

Inaugurada em 1875, a Igreja de Santo Antônio, em Passos, foi minha primeira referência religiosa. Lá fui batizado em 12 de julho de 1956, estudei o catecismo, que me ensinou que todas as crianças nascem pecadoras, e em 31 de maio de 1964 fiz minha primeira comunhão. Tudo nos conformes do catolicismo da época, que me massacrou com dogmas, culpas, proibições e a sensação de estar sempre pecando. Ao me lembrar dessas coisas, me sinto um velho.

A igreja ficava na rua Santo Antônio, a um quarteirão da minha casa. Quase tudo na minha família girava em torno dessa igreja. Minhas tias, irmãs de minha mãe, pertenciam à congregação Filhas de Maria, que preparava espiritualmente as jovens para serem “guardiãs da virtude, moral e religião”.

Algumas filhas da Tia Badica, que morava a poucos passos da igreja, também eram da congregação. A casa paroquial era propriedade da família da Tia Badica. A igreja de Santo Antônio foi demolida nos anos 1970, mas até hoje sinto o cheiro de seu interior, uma mistura de incenso, mofo e caca dos morcegos que se abrigavam entre o forro e o telhado.

Meus avós e minhas tias recebiam com frequência a visita do Padre Moacir, que atraía as crianças com um truque mágico: ele pegava nossa mão, segurava o braço e fazia um movimento, de forma que provocava um estalo, como se o quebrasse. Nunca desvendei o mistério, mas quando ele aparecia as crianças presentes corriam para oferecer o braço. Também me lembro de ter visto lá o bispo da Diocese de Guaxupé, Dom Inácio Dal Monte, um velhinho de longas barbas brancas e gestos delicados.

Fui batizado pelo Monsenhor Matias, um sujeito mal-humorado que parecia se divertir ao expulsar da igreja, durante as missas, as mulheres que não usassem véu e aquelas que tivessem aderido à recente moda da minissaia. Suas missas eram longas e aborrecidas, com discursos moralistas e ameaçadores.

Por inúmeras vezes, depois que fiz a primeira comunhão, eu desmaiei na igreja e tive que ser levado para casa pelo meu pai, porque era obrigado a permanecer em jejum até comungar. Quando a igreja mudou essa regra, eu também já tinha mudado as minhas.

Antes de comungar, era preciso me confessar a um padre. O confessionário era um símbolo de opressão religiosa. Não me lembrava de pecados para contar, mas como aprendera que todo ser humano é um pecador, eu os inventava. Só me confessava ao Padre Jaime, que me parecia ponderado e compreensivo. Mas essa harmonia não durou muito.

Eu tinha uns 15 anos quando fui passar um domingo numa chácara de conhecidos, na rodovia entre Passos e Itaú. No fim da tarde, eu e um amigo resolvemos sair antes dos demais, com medo da chuva que se anunciava. Fomos para a rodovia tentar uma carona. De repente, um fusquinha apontou depois da curva. Fizemos sinal e o carro parou.

Era o padre Jaime, mas quem dirigia era uma moça que eu já conhecia de vista. Aparentemente o padre ensinava a moça a dirigir, porque ela não mostrava muita habilidade e ele lhe explicava o que fazer. Pouco tempo depois ele abandonou a batina e os dois se casaram.

Enquanto permaneceu como padre, ele morou na casa paroquial, com o monsenhor Matias, o Padre João e meu querido amigo Geraldo Rezende, seminarista, que conheci no Colégio Tiradentes, criado pela Polícia Militar e recém-inaugurado. Ao terminar o curso primário, fui matriculado nessa escola contra a minha vontade. Meu pai tinha certo fetiche com a polícia, onde vários de seus irmãos fizeram carreira. Estávamos no final da década de 1960, mas eu não tinha uma ideia muito clara daqueles tempos sombrios. Só intuição.

O padre João, capelão da polícia, era o diretor do colégio. Era jovem, as meninas o achavam bonito. Tinha olhos azuis, voz mansa e um olhar demoníaco. Caminhava devagar, batendo na palma da mão esquerda com uma miniatura de adaga que usava como espátula, fazendo ameaças aos estudantes postados no pátio como soldados.

Para mim, aquilo se parecia mais com um quartel que uma escola. Formação, marchar, fardas e casquetes, obediência às ordens. Pelotão, sentido! A disciplina era valor absoluto, alimentada por aulas de religião e moral e cívica. Por várias vezes explodi em casa, aos prantos, me recusando a voltar para o colégio, mas cumpri meus quatro anos de pena.

Minhas obrigações de ir à missa todos os domingos, comungar e confessar ao menos uma vez por mês e rezar o terço todas as noites foram cumpridas fielmente até por volta de 16 anos, quando decidi que no domingo seguinte quebraria a primeira regra.

Troquei a missa das 10 horas, na Matriz, por uma mesa do Bar Central, no lado oposto da praça, onde meus amigos tomavam uma cerveja. Essa falta me levou a passar um tempo perturbado por um sentimento de culpa, a velha culpa católica, mas estava vencendo a opressão do fanatismo religioso.

Numa Sexta-Feira Santa, dia em que os fiéis não podiam comer carne, pedi um quibe no bar e caminhei em direção à Matriz. Tinha bebido, mas estava em plena consciência. Entrei na igreja pela porta lateral e sentei-me na escada do altar, de costas para o padre e de frente para os fiéis que assistiam à missa.

Comi calmamente o quibe e saí pela mesma porta. Hoje eu não o faria, porque sou vegetariano há mais de 30 anos, não por castigo, mas por iluminação. Aprendi desde cedo que as normas da Igreja opunham virtude e prazer, felicidade e pecado. Minhas primeiras experiências sexuais foram impregnadas dessa contradição, e por isso divinamente prazerosas.

ALEXANDRE MARINO, escritor e jornalista em Brasília/ DF, escreve quinzenalmente às sextas nesta coluna