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Opinião

O borbulhar do gênio

Aprendemos na escola que Castro Alves foi o “Poeta dos escravos”, por sua devoção apaixonada à causa abolicionista. Também aprendemos que ele foi um dos mais importantes poetas brasileiros, ainda que tenha tido pouco tempo de vida para construir sua obra, pois morreu aos 24 anos. O dia de seu nascimento, 14 de março, tem sido comemorado como o Dia Nacional da Poesia, embora nunca tenha sido oficializado. E sua voz contra a escravidão continua ecoando.

Castro Alves teria completado, este mês, 176 anos. Estamos no século 21, as informações circulam a alta velocidade, a medicina evoluiu, a escravidão foi abolida, por lei, há 135 anos, mas não foi extinta, como frequentemente podemos constatar pelo noticiário. O mundo não é menos injusto do que era em 1847, nem o Brasil.

Em 520 anos de História, o Brasil manteve a escravidão durante 350 anos e foi o último país das Américas a aboli-la. Maior território escravagista do Ocidente, recebeu 4,5 milhões de africanos escravizados que, com seu trabalho e o de seus descendentes, construíram o Brasil. Que futuro aquela realidade nos reservava?

A situação de extrema opressão dos afrodescendentes torna atualíssima a obra de Castro Alves, assim como seu mais importante poema, o “Navio negreiro”: “Ontem a Serra Leoa, / A guerra, a caça ao leão, / O sono dormido à toa / Sob as tendas d’amplidão! / Hoje… o porão negro, fundo, / Infecto, apertado, imundo, / Tendo a peste por jaguar… / E o sono sempre cortado / Pelo arranco de um finado, / E o baque de um corpo ao mar…”

A vida, para Castro Alves, veio e se foi em alta velocidade, e ele soube impor o mesmo ritmo à sua mente inquieta, obedecer à sensibilidade de menino sonhador. Desde cedo conviveu com a tragédia: perdeu a mãe aos 12 anos, e aos 16 sentiu os primeiros sintomas da tuberculose que o levaria à morte. Um ano depois, em 1864, seu irmão José Antônio suicidou-se, vítima de misteriosa perturbação mental.

E em 1866, já estudante de Direito no Recife, viu morrer o pai, durante as férias em Salvador. Ele nasceu em 1847, na Fazenda Cabaceiras, no Recôncavo baiano, onde conheceu o primeiro amor de sua vida: Leonídia, amiga de infância com quem gostava de brincar e correr pelos campos. Castro Alves foi o amor eterno de Leonídia, que morreu louca num hospício em Salvador, aos 87 anos, dizendo-se sua noiva e preservando até o fim uma pequena caixa com poemas, anotações e desenhos do poeta, que guardava desde a infância.

Castro Alves ingressou na Faculdade de Direito de Recife e depois transferiu-se para São Paulo, onde prosseguiu o curso e foi colega de Rui Barbosa, Tobias Barreto e vários outros personagens da História do Brasil, entre eles um ex-presidente da República, Rodrigues Alves. Ele viveu um dos períodos mais efervescentes do Segundo Império.

Visionário desde cedo, Castro Alves demonstrou que tinha plena consciência de seu papel de poeta social durante um exame de Direito Civil, ao fazer um vibrante discurso contra o poder marital e a favor dos direitos das mulheres. Com seus versos, manifestou-se sobre a Guerra do Paraguai, o movimento pela República e especialmente a campanha abolicionista. Em 1870, um ano antes de morrer, lançou seu único livro editado em vida, “Espumas Flutuantes”.

Mas a poesia, o teatro e a vida amorosa o atraíam mais que o Direito. Nessa época, ele estava vivendo com a atriz portuguesa Eugênia Câmara, 10 anos mais velha, uma relação apaixonada e turbulenta que durou três anos. Depois do rompimento, durante uma caçada, um tiro acidental no tornozelo o levou a amputar o pé esquerdo. Com a saúde fragilizada, voltou à vila de Curralinho, onde passara a infância. Castro Alves tinha sinais de tuberculose desde os 17 anos, e não resistiu à doença. Morreu em julho de 1871.

Castro Alves foi um ser humano notável por sua grandeza de alma e sua poesia. Enquanto viveu, manejou as palavras com a destreza de um guerreiro, no papel e por meio de declamações apaixonadas, que faziam delirar multidões. Castro Alves previu a glória e a morte precoce. O poema “Mocidade e Morte”, que escreveu aos 17 anos, prenunciava: “Eu sinto em mim o borbulhar do gênio./ Vejo além um futuro radiante:/ Avante! – brada-me o talento n’alma/ E o eco longe me repete – Avante!/ (…)/ E a mesma voz repete funerária: –/ Teu Panteon – a pedra mortuária!” No entanto, Castro Alves está vivo para sempre.

ALEXANDRE MARINO, escritor e jornalista em Brasília/DF, escreve quinzenalmente às sextas nesta coluna

 

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