ALBERTO CALIXTO MATTAR FILHO
“Os ratos”, de Dyonelio Machado
Há tempos ouço considerações sobre esse pequeno clássico da literatura brasileira. Ao que me consta, não utilizado nos currículos escolares. Críticos de valor, no entanto, o lançam a patamares elevados. Fui conferir.
Dyonelio Machado nasce em Quaraí, Rio Grande do Sul, em 1895 e morre em Porto Alegre, aos 89 anos, em 1981.
De origem pobre, aproximou-se das letras trabalhando como simples funcionário num jornal de sua cidade, o que lhe rendeu paixão pelo jornalismo. Em 1911, chega a fundar, lá mesmo em Quaraí, um periódico de nome “O martelo”, título até revelador de suas preferências políticas.
Noutra rota, em meados da década de 20, começa a estudar medicina em Porto Alegre e, após concluir a universidade, especializa-se em psiquiatria no Rio de Janeiro. Logo, adere aos estudos da psicanálise e se torna precursor dos métodos freudianos no Rio Grande do Sul.
Embora a medicina tenha sido sua atividade mais constante, Dyonellio enveredou pela literatura ao escrever alguns contos e romances, ‘Os ratos” é tido como sua obra-prima.
Trata-se de um curto romance publicado em 1935. Em apenas 177 páginas, ficamos envoltos pelo drama do protagonista, Naziazeno Barbosa, nome realmente estranho para os tempos atuais. O personagem era um funcionário público do município de Porto Alegre das primeiras décadas do século XX.
Em drástica situação financeira, Naziazeno tinha uma dívida de 53 mil réis com o seu fornecedor de leite, e era preciso quitá-la no dia seguinte. Se não o fizesse, não receberia mais aquele sustento diário, o que seria terrível. Naziazeno, casado, tinha um filho ainda criança.
O relato começa com as cobranças e ameaças de corte feitas pelo leiteiro numa manhã qualquer. Desde então, tem início a saga do nosso personagem pelos recursos que pudessem saldar o débito. Todo o enredo transcorre durante apenas um dia.
São páginas e mais páginas em que seu drama vai se acentuando, ora com perspectivas de êxito, ora com fracassos nas tentativas de obter socorro financeiro do chefe da repartição em que trabalhava.
Resta-lhe percorrer, em desespero, as ruas de Porto Alegre no encalço de velhos conhecidos que viviam de aventuras de jogos de azar e de obter empréstimos com agiotas.
Enquanto perambula por lojas, cafés, casas de jogos, ao leitor são expostos, a todo instante, os pensamentos que o atormentavam a respeito da necessidade imediata. Tortura psicológica. Conseguiria satisfazer o objetivo?
O que se percebe é que ele vai se tornando cada vez mais refém da imaginação, cada vez mais obsessivo, o que leva o narrador a revezar frases e parágrafos entre os fatos em si e os delírios que o sufocavam sob constantes fluxos de consciência.
Durante o torturante périplo, vão surgindo imagens do panorama urbano daquela já antiga Porto Alegre, inclusive os comportamentos pessoais dos personagens a que Naziazeno se socorre para auxiliá-lo.
“Os ratos”, como tantos, é também um romance aberto a interpretações. Ao final da edição, lá está um ótimo posfácio do crítico
Davi Arrigucci Júnior, no qual aponta intercessões da obra com grandes clássicos da literatura e em relação aos cenários político e social dos anos em que foi escrita.
Menciona até nomes consagrados como Dostoiévski, Kafka e Graciliano Ramos. É preciso mais?
De fato, “Os ratos” demonstra, mais uma vez, a simbiose entre as circunstâncias da vida e a literatura. Mas tudo de modo a harmonizar enredo e forma. Não basta expor o drama de um homem em incessante obsessão por solucioná-lo. É preciso valer-se de uma linguagem para tal.
Nesse sentido, a obra produz perfeita simetria. As angústias de Naziazeno encontram, pois, no estilo de Dyonelio, o caminho pavimentado para transmitir intensamente ao leitor tudo o que ocorre.
Vamos, assim, sofrendo juntos com um homem que se vê frágil e impelido a agir o mais rápido possível perante uma realidade sempre mais ampla e poderosa. Uma dívida com um fornecedor de leite descamba para um turbilhão de imagens, circunstâncias e sensações.
Seriam o protagonista e os personagens com quem se relaciona apenas pessoas sem maiores perspectivas em face de situações implacáveis, iminentes e que se mostram aptas a qualquer aventura que se lhes apresente para eventual solução?
Ao que tudo indica, sim. Simples membros de uma sociedade repleta de carências e vícios estabelecidos. Eis a forte simbologia na metáfora do título. Ratos. Ratos em luta pela sobrevivência.
E nós? Quantas vezes não nos vemos acuados por certos conflitos? Quantas vezes não sofremos ou refletimos, de forma obsessiva e solitária, na esperança de alívio em razão de fatos causadores de angústias?
Dyonellio Machdo, em um texto artístico e inteligente, quer nos fazer pensar e viver, no íntimo, o que se passa com o pobre funcionário Naziazeno. Atinge o objetivo com êxito.
ALBERTO CALIXTO MATTAR FILHO escreve quinzenalmente, às quintas, nesta coluna (mattaralberto@terra.com.br)