1 de novembro de 2024
Foto: Reprodução
Alexandre Marino
Onde você vai passar o fim do mundo? É preciso decidir logo, pois os especialistas o esperam para muito breve, embora sem data marcada. De minha parte, passo horas trancado na biblioteca pensando, pensando, mas até agora não escolhi meu destino. Penso em Macondo, que seu descobridor, Gabo, descreve como uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, construídas às margens de um rio de águas diáfanas a fluir por um leito de pedras brancas e redondas como ovos pré-históricos. O lugar já deve ter mudado bastante, porque estive lá mais de cem anos atrás. Uma das maiores celebridades do lugar era um tal de Coronel Aureliano Buendía, que disputou 32 guerras contra o poder e perdeu todas. O poder é cruel com os adversários e sufoca a humanidade, que agora está perdendo sua pior guerra. Ninguém vence uma guerra.
Outro lugar da minha lista é Comala, um povoado a que fui conduzido por um escritor mexicano de minha estreita relação. Quando lá cheguei, todos os comalenses estavam mortos, e só suas almas habitavam o lugar. Isso também foi há muito tempo, e o povoado, pelo que se tem notícia, mudou bastante. Hoje é um centro turístico mexicano, e eu gostaria de entender o que houve com aquelas pobres almas. Mas é provável que eu escolha outro lugar, porque não estou interessado em conviver com turistas e todos os tipos de gente que os rodeia, como guias, atendentes de hotéis, vendedores de souvenirs e espectadores do fim do mundo.
Há de ser um lugar muito especial, pois o fim do mundo não é um fenômeno corriqueiro. É importante não ficar paralisado em casa, olhando pelos vidros embaçados da janela, em meio ao ar enfumaçado, a chuva de mísseis caindo ao redor. Será uma viagem rápida e sem volta. Para uma visão mais contundente do fenômeno, pode-se escolher o Nono Círculo do Inferno, que Dante Alighieri visitou em lugar incerto e não sabido, mas localizável. Lá padecem os traidores da Pátria, os verdadeiros agentes do fim do mundo. Esta escolha pode esconder uma vantagem: muitas das pessoas admiradas por aqui já compraram passagens só de ida para lá.
Os anjos com suas trombetas já estão a postos. O mundo sempre teve agentes do Apocalipse. Entre 1939 e 1945, um desses loucos, Adolf Hitler, provocou o maior conflito armado de que já se teve notícia, com a sua política de conquista de nações, e foi por muito pouco que grande parte do mundo não se tornou território ocupado pela Alemanha. Morreram cerca de 70 milhões de pessoas, incluindo os 6 milhões de civis judeus nas mãos dos nazistas, em câmaras de gás ou outros métodos cruéis de assassinato. Pela primeira e única vez se usaram bombas nucleares, lançadas pelos Estados Unidos sobre o Japão, mas para sorte do resto do mundo a Alemanha nazista não tinha essa tecnologia. E azar do Japão. Agora, menos de 100 anos depois, as bombas nucleares proliferam pelos quatro cantos do globo, sob o comando de filhotes de Hitler, ansiosos por dispará-las. Parece ficção distópica, mas é a realidade do mundo que a humanidade vem criando desde que o primeiro hominídeo transformou em arma o galho caído de uma árvore.
Pode-se fugir para Shangri-la, Atlântida ou Pasárgada, mas há notícias de que esses paraísos foram extintos por fenômenos provocados pelas mudanças climáticas. Shangri-la teria sido soterrada por uma gigantesca avalanche do Monte Karakal, de 8.500 metros de altitude, afogando em água e neve uma inimaginável coleção de obras de arte, a biblioteca que abrigava edições raras em quase todos os idiomas do mundo e alguns milhares de habitantes que viviam em paz e não envelheciam. Atlântida, submersa no Atlântico por volta de 9.560 a.C., permaneceu habitada sob as águas graças a um edifício imenso construído antes do cataclismo, com alta tecnologia, para refugiar a população. Era uma civilização avançada que arrefeceu pela poluição do microplástico e dos agrotóxicos levados ao mar pelos rios que atravessavam os extensos campos de produção agropecuária, envenenando os animais das profundezas e toda sua produção de alimentos. Pasárgada, que o poeta Manuel Bandeira conheceu durante uma viagem de morfina, tem localização incerta e acolhe personagens do passado, do presente e do futuro, mas parece ter entrado em crise política e econômica após a invasão de inimigos do Rei.
A chuva de pedras e fogo já atinge o solo, incendiando florestas, levando à morte as mais diversas espécies de criaturas que habitam a Terra. As águas dos mares e dos rios estão envenenadas pelo lixo, pelo esgoto, pelo mercúrio e pelos animais mortos. O sol, a lua e as estrelas estão feridos, e insetos peçonhentos já se erguem do fundo dos abismos para impor as suas verdades fabricadas. A fome e a miséria batem às nossas portas e atravessam nossos caminhos. Ouve-se um estrondo: o céu vai cair sobre nossas cabeças.
Diante da urgência, podemos ir passar o fim do mundo em Utopia, uma república onde a abolição da propriedade privada e do dinheiro deu fim à paixão por posses, à ganância e à criminalidade. Ilha situada a menos de 25 quilômetros da costa da América Latina, sua ligação com esse continente é dificílima, devido à turbulência dos ventos da região e uma neblina espessa que separa uma de outro. Há rumores de que a ilha foi invadida pelos bárbaros de uma ilha vizinha, Distopia, que cobiçavam suas riquezas, mas a notícia nunca se confirmou. Se Utopia sobreviver, é possível que a História dê uma reviravolta e o fim do mundo seja adiado.
ALEXANDRE MARINO, escritor e jornalista em Brasília/ DF, escreve quinzenalmente às sextas nesta coluna