ALEXANDRE MARINO
O empresário norte-americano Anson Green Phelps, nascido em 1781 em Simsbury, Connecticut, de família humilde, começou sua vida fabricando selas, e morreu aos 72 anos, deixando um patrimônio de 2 milhões de dólares. A origem de sua fortuna foi a indústria de relógios Ansonia, que começou a produzir em 1850 e, na década de 1920, havia exportado cerca de 10 milhões de unidades, de 440 modelos diferentes, para duas dezenas de países.
A inovação desses relógios era o mecanismo fabricado em latão, ao contrário de outras marcas mais antigas produzidas em cobre. O mostrador de quase todos os modelos tinha números em algarismos romanos. Eram movidos a corda e marcavam as horas e meias-horas com um badalo musical. Muitos desses relógios chegaram ao Brasil, e podem até hoje ser encontrados em antiquários e casas de leilões, e mesmo em residências.
Em data imprecisa entre a primeira e segunda década do século 20, um Ansonia de parede foi oferecido por um fabricante de cigarros brasileiro como prêmio para quem juntasse mil selos que, naquela época, lacravam os maços. Meu avô, Chico Gomes, nascido em Passos em 1890, também de família humilde, fumante a vida inteira, empenhou-se o quanto pôde em juntar os selos e, com ajuda de parentes, amigos e quem mais pudesse, conseguiu ganhar o relógio. Desde então, ele decorou a parede da sala do imponente sobrado que meu avô havia acabado de construir na rua Ruy Barbosa, que muitos anos depois ganhou novas casas, recebeu calçamento e passou a chamar-se Deputado Lourenço de Andrade.
Meu avô morreu em janeiro de 1975, aos 85 anos. Eu, aos 18, ainda não compreendia que, quanto mais se vive, mais a morte se torna real e presente. Naquele dia eu estava em Belo Horizonte, fazendo as últimas provas do curso colegial, hoje ensino médio. No domingo anterior, pouco antes que eu saísse em direção à rodoviária de Passos, minha mãe me puxou para um canto, olhou-me nos olhos e disse: “Vá se despedir do seu avô, pode ser que você não o veja mais.” A presença invisível da morte costumava me repelir, mas naquele momento me aproximei e falei com ele. Meu avô estava doente, de cama, tinha o corpo enfraquecido e há alguns anos passara para minhas tias a tarefa de, duas vezes por semana, subir numa cadeira para dar corda no relógio.
Era final da tarde de uma terça-feira quando recebi a notícia. Havia um ônibus para Passos à meia-noite. Dormi pouco durante a viagem. Pensava nas histórias sobre tempos antigos de Passos, que meu avô gostava de contar. À noite, sentava-se à mesa da sala do sobrado; minha avó, minha mãe e minhas tias ao redor, e eu no colo de alguma delas, o ouvíamos falar. Esses momentos eram especialmente marcantes quando faltava energia elétrica na cidade, o que era muito comum. Velas sobre a mesa criavam um ambiente de aconchego, e o jogo de luz e sombra sobre o rosto de meu avô tornava suas narrativas ainda mais realistas. Frequentemente ele contava a história do relógio, que despejava seu tic-tac na parede às suas costas.
Cheguei a Passos ao amanhecer. O ônibus da Transilva estacionou na antiga rodoviária da Praça do Rosário. Atravessei a rua e desci a Antônio Carlos. Seria mais rápido seguir em linha reta, pela Deputado Lourenço de Andrade, mas preferi evitar a visão à distância da movimentação diante do sobrado. Fiz meu caminho habitual, passando pela Praça da Matriz, rua Santo Antônio e virando à direita na Travessa São João. Antes de chegar à esquina, a poucos metros da casa, parei por alguns momentos. Depois, virei à esquerda e cheguei ao velho sobrado. Na época, os velórios aconteciam nas próprias residências, e havia muita gente na calçada. Uma pessoa amiga da família se ofereceu para segurar minha mochila.
Subi a escada, sentindo cada degrau, e da sala de visitas tive a primeira visão da cena, que permaneceu para sempre em minha memória. A porta de vaivém que dava acesso ao interior da casa estava aberta. Dei mais alguns passos em direção à sala de jantar, de onde haviam retirado a mesa e a cômoda que ficava junto à parede do fundo. Naquele mesmo recinto onde, durante tantos anos, meu avô reunira os ouvintes para suas histórias, ele agora estava deitado, em silêncio, indiferente ao burburinho a seu redor. À sua esquerda, o relógio parecia observar a cena: o velho Chico Gomes cercado de parentes, vizinhos, amigos da família, pronto para retornar à sua eternidade.
O Ansonia marcava quatro horas e seis minutos. O horário exato da morte de meu avô. Quando ele exalou o último suspiro, o relógio parou junto. Em respeito à memória do velho, ou à estreita relação entre eles, ninguém ousou mexer no relógio por algum tempo. Depois o puseram para funcionar de novo, mas o relógio fraquejou e, entre um tropeço e outro, estancou definitivamente. Em 2007, quando o sobrado foi fechado por falta de moradores, ele ainda estava lá, mas já não havia tempo a ser marcado.
ALEXANDRE MARINO, escritor e jornalista em Brasília/ DF, escreve quinzenalmente às sextas nesta coluna