9 de agosto de 2024
Foto: Reprodução
ALEXANDRE MARINO
Pela janela aberta, observo o movimento dos pássaros na árvore em frente. O sol de pouco mais de meio-dia não os intimida, assim como o vento frio que bate no fim da tarde. Eles estão em busca de algum alimento: os frutos da gmelina, que começam a amadurecer, ou as flores de algumas árvores próximas. Quando se sentem seguros, voam até os bebedores estrategicamente pendurados nas laterais das janelas do prédio, porque a água adocicada com açúcar demerara também é um atrativo irresistível. Mas para isso têm de vencer o mau-humor dos beija-flores, que não gostam de compartilhar o doce néctar fornecido pelo observador.
A janela se transforma numa tela de cinema, que exibe essas criaturas em sua atividade incansável. Nos bebedouros, que fazem par com os vasos de plantas distribuídos nas floreiras, batem ponto cambacicas, sanhaços, saís-azuis, encontros, bem-te-vis e até periquitos, além dos beija-flores, sem contar algumas outras espécies que deram as caras somente uma vez, como o fim-fim e outros não identificados.
Quando está com tempo, o observador se diverte com a disputa entre o beija-flor-tesoura e a cambacica, pequeno pássaro extremamente arisco, que se esconde entre os vasos à espera de sua vez de matar a sede. As asas do beija-flor não lhe permitem passar entre os vasos, então a cambacica ali se sente segura. Quando ele se afasta, ela pula no bebedouro, sorve alguns goles e volta a se esconder, a tempo de se esquivar do voo rasante do adversário. Essa disputa persiste algum tempo, que para nós é uma fração de tempo, já que os pássaros não se guiam por nossos relógios e estão sempre em movimento.
O sanhaço-do-coqueiro habituou-se a vir ao bebedouro de vez em quando, e geralmente vem sozinho. O curioso é que a espécie nunca havia sido vista na quadra antes. Já os saís-azuis costumam vir em casais. São dos mais belos pássaros que frequentam as árvores da quadra. O macho tem penugem azul-celeste, máscara preta e asas rajadas de preto e azul, uma coloração que chama a atenção pela beleza, isso quando ele se deixa observar com atenção. A fêmea tem o alto da cabeça de mesma coloração azul, máscara preta semelhante, e o resto do corpo mistura verde com rajados cinzentos.
O encontro é outro frequentador assíduo do bebedouro, e deste o beija-flor prefere manter distância, porque é grande e raramente vem sozinho. Tem esse nome por causa da mancha de amarelo intenso no encontro da asa com o corpo, que é todo preto. Seu bico muito fino e a sede voraz fazem dele grande consumidor da água adocicada. Já os bem-te-vis, quando aparecem, estão mais preocupados em demarcar território, porque os bebedouros não são para seu bico largo e achatado. O mesmo se poderia dizer dos periquitos-de-encontro amarelo, aves muito comuns na quadra, não fosse um truque desenvolvido por instinto. Eles se dependuram de cabeça para baixo, introduzindo no furo apenas o bico superior, para onde a água flui enquanto o bebedouro balança.
O observador é jornalista, portanto adquiriu desde cedo o hábito de observar comportamentos, e não só de pássaros. A quadra onde vive e as próximas, bem arborizadas, são habitadas por várias outras espécies de aves, que aparentemente não se interessam pela água dos bebedouros. Há pica-paus, sabiás-laranjeira, canários, almas-de-gato, peiticas, joões-de-barro, saíras-de-chapéu-preto, balança-rabo-de-máscara, corujas-buraqueiras, e outros de nomes igualmente poéticos.
Pássaros proporcionam um rico aprendizado sobre as leis da natureza, e também sobre a irracionalidade humana. Há algum tempo, estabeleceu-se numa árvore da quadra um urutau, também conhecido como mãe-da-lua, ave solitária de grande mimetismo, que facilmente se confunde com o galho onde pousa e permanece imóvel por longos períodos. Para observadores de primeira viagem tem aspecto assustador, e há quem o considere portador de mau agouro. Seu canto, noturno, é triste e melancólico, mas de grande beleza. O observador, que gostava de ouvi-lo na madrugada, soube que um vizinho, indivíduo aparentemente normal, queria que funcionários do prédio o matassem. Pobre homem, incapaz de admirar o que é belo e inusitado.
Alguns moradores da vizinhança também reclamam do sabiá-laranjeira, pássaro que passa boa parte do ano calado, mas ao chegar a época de acasalamento, durante a seca, emite um canto agudo e prolongado, muito bonito. O problema é que ele gosta de cantar de madrugada, quando tudo está em silêncio. Para o observador, é um privilégio acordar para ouvi-lo. Afinal, quanta gente neste país não acorda ao som de tiroteio e balas perdidas?
A vocalização das aves sempre fascinou a humanidade, mas na verdade elas vocalizam para se comunicar com o meio. Cantam para marcar território, alertar para o perigo, cortejar ou orientar os filhotes. Sentimentos de mau agouro, alegria, tristeza ou saudade são frutos da capacidade de abstração do ser humano. Observar aves, fotografá-las e filmá-las são atividades que nos reintegram à natureza, saudáveis exercícios de meditação. Todos nós somos criaturas da natureza, mas nós, humanos, perdemos esse vínculo. Talvez elas nos ajudem a recuperá-lo.
ALEXANDRE MARINO, escritor e jornalista em Brasília/ DF, escreve quinzenalmente às sextas nesta coluna