Dia a dia

O inimigo do chocolate quente

1 de junho de 2024

Foto: Reprodução

ADAÍLTON ALMEIDA

 

− Um café, por favor.

O homem mirou pela porta de vidro da cafeteria o céu nublado. Outro cliente abriu a porta e uma corrente de ar entrou. Estremeceu de frio, apesar do suéter confortável.

Antes que a garçonete deixasse a mesa, retificou o pedido:

− Na verdade, gostaria de um chocolate quente, desculpe-me.

Algumas mesas vazias, alguns gatos pingados tomando pingado. O cenário era melancólico, outono de maio flertando com o inverno de junho e vários solitários numa cafeteria.

O chocolate chegou, porém, mal percebeu a sua presença. O rapaz vagava em pensamentos, uns chegavam, outros iam embora, e alguns voltavam, em uma troca de vagões sem um destino.

Somente quando o smartphone retrucou e uma mensagem do trabalho apareceu no visor, ele se deu conta que estava atrasado. Apressadamente, virou a bebida espessa. Já frio, o líquido desceu como uma cascata de gelo.

Durante o caminho para o edifício do banco, onde passaria um quarto do dia atendendo telefonemas e pessoas, deu uns trocados para o mendigo na porta de uma padaria, fez carinho em um cão caramelo que veio ao seu encontro abanando a cauda de forma simpática e se desviou de transeuntes apressados, alguns com coleiras-gravatas outros sem gravatas e livres.

Passou pela porta giratória, cumprimentou o segurança sonolento, sentou-se em seu trono, onde não era rei, como em seu sofá, apenas um plebeu que não podia calçar os chinelos para ficar mais confortável.

Mais uma tarde arquivada na gaveta de sua vida, como outra qualquer, folhas em branco. O último morador do prédio a apagar as luzes do apartamento, para fazer as vezes da luz do sol que tardaria a chegar.

Algumas madrugadas o bebericavam lentamente, então era tomado pela insônia em gole só. Quem dera pudesse adiar as visitas noturnas, dos amores perdidos por vontade ou por imposição, quem dera pudesse ligar a TV e ver alguma notícia feliz que o distraísse, ou sentar-se no banco da praça, tarde da noite, sem medo de ser assaltado, quem dera pudesse enxergar a luz no fim do túnel nesse bonde de infinitos devaneios.

Queria se perder em alguma estação e esperar pelo trem que o levaria às respostas de perguntas que não tinha coragem de fazer aos amigos, ao terapeuta ou mesmo ao padre da igreja ao lado. O proibido mora no não dito, sempre soube… Vivia calado, em uma autocensura torturante.

A manhã seguinte nasceu mais nebulosa que a anterior e o frio entrava na cafeteria sem qualquer visita ou anfitrião para abrir a porta. O chocolate quente pousou na mesa, pelas mãos precisas da garçonete que sempre o olhava de forma piedosa, como se ele tivesse com um mal terminal, mesmo que não tivesse.

Dessa vez, para se punir pelo atraso do dia anterior, freou a contemplação introspectiva e tomou o líquido em um gole só. Lágrimas quentes, assim como o líquido fumegante, desceram quando a xícara ficou vazia. A bebida lhe queimou a língua e escorreu feito lava por dentro do peito. Sentiu o inferno naquele dia frio.

Enxugou o pranto inusitado com o guardanapo, observou à sua volta para identificar se alguém, talvez, fosse o acudir, achando que ele transbordava de angústia, mas logo saiu apressadamente cruzando a porta do lugar para depois atravessar a conhecida porta giratória, pois o seu trono lhe esperava. Não queria que ninguém se enganasse: geralmente inundava por dentro.

Mais um dia, mais uma pasta incolor para a gaveta.

O dia seguinte, sexta-feira, vestia-se da fantasia de que seria melhor. Por que esperamos mais do sexto dia da semana? E por que somos tão desesperançosos em recomeçar? Segundas-feiras também podem ser legais, afinal.

Para aquele rapaz a sorte estava mesmo na sexta, trinta e um de maio, anunciando primeiro de junho, mês do amor, para os mais místicos.

Apesar do frio impiedoso lá fora, dentro da cafeteria estava mais aconchegante do que de costume, havia mais corações batendo.

Cabisbaixo, refletiu alguns instantes, não muito, nem pouco. Ergueu o rosto e o chocolate quente o olhou, ele o olhou de volta, porém, ligeiramente, outro olhar fisgou o seu, de íris cor de chocolate e cílios longos, deixou-se pescar quando sorriu em sua direção, quase fechando as janelas de pálpebras levemente sombreadas. Então o rapaz sorriu, com os lábios, para a moça que estava sentada duas mesas à frente.

A garganta secou repentinamente, bebeu a gole lento o chocolate, que, por sua vez, não estava mais quente, nem frio: desceu morno, como o que sentia no peito naquele momento. O céu nublado ficou colorido dessa vez.

ADAÍLTON ALMEIDA, escritor e advogado, autor do livro “Poesias Inusitadas”, integra a Associação Cultural dos Escritores de Passos e Região, cujos membros se revezam na autoria de textos desta coluna aos sábados