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O grande mentecapto, um clássico de Fernando Sabino

Nesses tempos em que ocorrem tantos atos sobre os quais não se tem suficiente convicção se resultam de delírio, inocência, senso de justiça ou até lucidez dos que os praticam, me vem à lembrança uma obra espetacular de um reconhecido escritor brasileiro, “O grande mentecapto”, de Fernando Sabino. 

Em seu enredo, surge uma criatura significativa, Geraldo Viramundo, o protagonista, que toma o leitor do início ao fim em suas peripécias, ora lúcidas, ora malucas. Geraldo Viramundo é, por certo, um dos grandes personagens da literatura brasileira.
Na verdade, o mundo sempre esteve às voltas com tais questões, essa espécie de zona nebulosa a respeito de uma infinidade de condutas de que se pode extrair um pouco de tudo. Se até o excesso de razão pode ser perigoso, o que não se dirá das atitudes elaboradas sob os fluxos das paixões, dos fervores, das crenças excessivas?

Aliás, a literatura é farta em apresentar tipos que transitam entre fantasias tresloucadas e atos racionais, justos. Aí está o imortal Dom Quixote, de Miguel de Cervantes. Aí estão, por exemplo, vários personagens de Dostoiévski, de Gabriel Garcia Márquez e tantos outros. 

Já escrevi sobre tal obra há mais de seis anos. Quem se aventura por suas páginas, não consegue realmente despregar os olhos e a atenção. Claro que valeria entrar na lista de algumas de minhas releituras. Releituras – insisto − são fundamentais para sedimentar opiniões.

Naquele texto de meados de 2016, eu dizia que um grande amigo que tive me deixou de presente, quando resolveu ir embora de Passos, uma dessas obras marcantes da literatura brasileira, “O grande mentecapto”, do consagrado escritor mineiro Fernando Sabino. 

Que ótimo! Nos bate-papos sobre livros durante a nossa convivência, sempre trocávamos palavras a respeito do que havíamos lido. E ele sabia que, por uma dessas inevitáveis lacunas no universo da leitura, eu ainda não havia me dedicado às páginas de nenhuma obra de Fernando Sabino.

A experiência foi esplêndida. Aqueles que leram “O grande mentecapto” provavelmente hão de concordar que se trata de extraordinário romance. Sem dúvida, um dos clássicos da literatura brasileira do século XX.

Informações da editora apontam que Fernando Sabino começou a escrevê-lo em 1946, aos 23 anos, como uma espécie de distração para as obsessões literárias que o sufocavam, mas alguns percalços o fizeram suspender a escrita da obra por anos. Somente a recomeçou em 1979, após remexer velhas anotações pessoais.

Foi então que, num fôlego de apenas 18 dias de trabalho, nos brindou com as peripécias desse grande mentecapto, que é, ninguém mais, ninguém menos, do que Geraldo Viramundo, o incrível protagonista.

Difícil começar a ler a obra sem se deixar envolver por Viramundo. No capítulo III, o autor nos explica o porquê do exótico nome, que representa uma aglutinação entre o verbo virar e o nome mundo. Virar como remexer, girar, aventurar-se, perambular sem local fixo por fronteiras diversas, causar estragos, deixar rastros, histórias e episódios por onde passava, a propósito, cidades exclusivas de Minas.

Da infância, no pequeno município de Rio Acima, região da Estrada Real, às insólitas incursões posteriores por Mariana, Ouro Preto, Barbacena, São João Del Rei, Uberaba e outras, até desembocar finalmente em Belo Horizonte, a trajetória de Geraldo Viramundo assalta a cabeça do leitor, que, curioso, quer saber que fim terão as suas aventuras e desventuras, em que coexistem loucura, heroísmo, inocência, espontaneidade, companheirismo, coragem, tenacidade, senso de justiça e humor.

Episódio após episódio, os atos do dito cujo acarretam repercussões gigantescas, ainda que praticados quase sem intenção, muito mais em virtude de suas trapalhadas do que de seus objetivos. Afinal, não se esqueça do título: “O grande mentecapto”. 
Só mesmo o incrível talento do escritor Fernando Sabino torna possível que os casos excêntricos que envolvem uma figura tão simplória ganhem suficiente complexidade para retratar os problemas da conduta humana em geral.

Pode-se dizer que a história de Geraldo Viramundo e suas atitudes quase sempre bizarras acabam por se transformar numa crítica implícita aos inúmeros absurdos cometidos diariamente pelas pessoas consideradas normais, ou, noutros termos, aquelas que estão dentro dos parâmetros de uma dita normalidade.

Ao utilizar uma grande sequência de acontecimentos hilários e inusitados causados por um herói maluco e atabalhoado, Fernando Sabino, em brilhante impulso de criatividade literária, demonstra quão frágil se torna, muitas vezes, a linha divisória entre loucura e razão.

Como literatura brasileira que é, “O grande mentecapto” representa também aquele necessário passeio por nossa própria língua, dessa vez, sob um ótimo e ágil estilo.  

ALBERTO CALIXTO MATTAR FILHO escreve, quinzenalmente, às quintas, nesta coluna (mattaralberto@terra.com.br)

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