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O fogo do inferno

FOTO: REPRODUÇÃO

ALEXANDRE MARINO

O fogo do inferno não vem das entranhas da Terra, mas é de lá que vem o fluido invisível e maldito da dor, da discórdia e do ódio. É de lá que vem a riqueza, ou, segundo a sabedoria indígena, a mercadoria. A fonte de todos os males. Não importa se o mal vem dos subterrâneos ou da superfície, se vem do minério ou do produto que a terra gera à força, o fogo do inferno não vem das entranhas do Planeta, vem das entranhas do homem.

Na tradição cristã, o inferno é a derrota total, definitiva e irremediável da existência humana. Quando a conversão do danado não é mais possível, ele está para sempre cravado no pecado e na dor. Os falsos profetas, que segundo a Bíblia serão lançados ao inferno, agora incendeiam o Brasil inteiro, como se do fogo viesse a salvação. A estratégia é queimar tudo, transformar as florestas em cinzas, depois em pasto, depois em grandes plantações de soja, mantidas artificialmente à custa de adubos químicos, agrotóxicos e financiamento público, que será exportada e gerará altos lucros para uma elite econômica já coberta de privilégios. E se o fogo atinge e torna perdida sua lavoura, acidentalmente ou não, o governo perdoa suas dívidas e lhe concede benesses.

Os indígenas compreendem a Terra como um grande organismo vivo, em que todas as espécies vegetais e animais estão em constante interação. O xamã yanomami Davi Kopenawa, em sua extraordinária narrativa transcrita no livro “A queda do céu”, coloca-se como porta-voz de uma visão cosmológica incomum para o homem civilizado, já excessivamente tomado pelo viés materialista da produção e acumulação, que considera a Terra uma fonte de recursos a ser explorada e saqueada até o esgotamento.

As terras indígenas, especialmente na Amazônia, são o principal alvo dessa visão egoísta e antropocentrista, que pretende destruir para depois usar. O grande empresário, que usa a terra como ferramenta para produzir, cobiça a área aparentemente intocada da floresta para invadi-la com seus tratores, nela colocar seu gado ou produzir toneladas de soja, que se converterão em commodities, não em alimento, e engordarão sua conta bancária.

A terra intocada é um ser vivo, e assim os indígenas a preservam. As árvores produzem frutos no devido tempo, alimentam-se da seiva que a terra oferece, da água dos rios ou do subsolo; fornecem alimentos a outros seres, desde os fungos que se alojam em suas raízes, os insetos que percorrem seus troncos, os pássaros que se aninham em seus galhos, até os humanos que colhem seus frutos. O indígena planta e colhe para se alimentar, enquanto o empresário que cria gado e planta soja, esgotando a terra, se alimenta em restaurantes de grife.

Em julho deste ano, o jornal “Folha do Progresso”, de Novo Progresso, no Pará, publicou uma declaração de um pecuarista obrigado a retirar seu gado de uma área de preservação, ocupada ilegalmente: “Vou incentivar para botar fogo em tudo. Vamos avançar com essa ideia e o governo que apague, que venha proteger a floresta deles.” A cidade de Novo Progresso é a mesma onde, em 2019, pecuaristas locais promoveram o “Dia do fogo”, em protesto contra ações de proteção ao meio ambiente.

O confronto é inevitável, porque são duas visões opostas de mundo. É o fogo e a água. Enquanto o fogo se fortalece, não mais como primitivo recurso para preparar a terra para novas plantações, mas como arma política, a água dos rios está secando. De acordo com a organização MapBiomas, uma rede que envolve universidades, ONGs e empresas de tecnologia para monitorar o uso da terra, o Brasil perdeu 3% da superfície de água em 2023, em relação a 2022. Parece pouco, mas corresponde a uma superfície de 5.700 quilômetros quadrados, quatro vezes a área da cidade de São Paulo. A superfície dos rios encolheu 30% entre 1985 e 2023.

A ação orquestrada de colocar fogo nas matas em todas as regiões do país ao mesmo tempo é política e, mais que isso, é um ato de terrorismo. Parece que a extrema-direita mudou de estratégia: ao invés de atacar órgãos públicos e destruir aleatoriamente o patrimônio histórico depositado nas suas dependências, como fez em 8 de janeiro de 2023, se organizou desta vez para destruir o patrimônio natural do país inteiro, literalmente. Não é só terrorismo, mas suprema estupidez. Em seu livro “A vida secreta das árvores”, o engenheiro florestal alemão Peter Wohlleben conta que um punhado de terra de floresta contém mais seres vivos que o total de humanos no planeta, todos trabalhando e transformando o solo, tornando-o valioso para as árvores. Certamente essas criaturas não resistem a um grande incêndio, que esterilizará a terra.

Não foram só as florestas, as matas e todos os incontáveis seres que as habitam, de ácaros a onças pintadas. Foi também o ar que se respira, o que levou milhares de pessoas aos hospitais; foram bens particulares de inúmeras pessoas que se envolveram em acidentes nas estradas; foi a produção agrícola de trabalhadores honestos que estão no campo plantando alimentos para a população. E, mais que tudo isso, criou uma grave ameaça ao nosso futuro, porque uma destruição tão gigantesca certamente trará consequências ainda imensuráveis sobre o clima, sobre o fornecimento de água, sobre a qualidade e o preço dos alimentos e, enfim, colocará em risco a saúde e a sobrevivência de todos os seres vivos.

ALEXANDRE MARINO, escritor e jornalista em Brasília/ DF, escreve quinzenalmente às sextas nesta coluna

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