Opinião

O dia em que a verdade foi advertida

16 de junho de 2025

Foto: Reprodução

Quando a mentira ganha foro privilegiado e a verdade passa a ser censurada em nome do decoro.        

                    Luiz Gonzaga Fenelon Negrinho

Estou abismado. Não com as nuvens, nem com os buracos da rua, nem mesmo com as contas– mas com a maneira natural e serena com que a mentira é hoje celebrada, aplaudida e protegida, inclusive sob juramento. Sim, sob juramento!

Aquela antiga formalidade que nos ensinavam a respeitar, com mão sobre a Bíblia ou o coração, virou adereço de palco. “Você jura dizer a verdade, sob pena de perjúrio?”

Na audiência de hoje, assisti a uma cena que, se contada fora do foro, pareceria parte de um enredo cômico de mau gosto: a testemunha, em tom firme e teatral, mentia. Não eram meias-verdades, lapsos de memória, ambiguidades convenientes. Era mentira pura, feita à faca, forjada com frieza. E mentia com o desembaraço de quem acredita piamente que o mundo não mais se importa com a verdade – e talvez não se importe mesmo

Não me contive. A indignação saltou, viva, sem toga, sem gravata, sem filtro:

– Excelência, essa testemunha está mentindo feio! – soltei, como quem tira uma rolha de champanhe vencido.
Instalou-se um silêncio denso e, em resposta, veio a advertência cortante:

– Como advogado, o senhor está faltando com a ética, com o decoro.

Ah, o decoro… Esse manto nobre, que antes protegia a moralidade do ato jurídico, agora serve para abafar a verdade. Respondi sem elevar o tom, mas com o aço da palavra:

– Sei disso, Excelência. Mas não estou roubando a verdade alheia, tampouco ferindo suscetibilidades. Estou apenas assistindo a um espetáculo horroroso – e ainda sou obrigado a bater palmas?

A mentira, hoje, já não cora. Ela desfila altiva pelos corredores dos fóruns, senta-se à mesa com as partes e responde com convicção. É recebida com formalidades, tratada com respeito, e – pasmem! – protegida pela mesma liturgia que deveria bani-la. O pai da mentira não apenas reina: já possui foro privilegiado, estacionamento exclusivo e, quem sabe, até senha de acesso ao PJe.

É um mundo às avessas. O decoro virou biombo para o disfarce. O bom senso foi arquivado por falta de provas. E a verdade… coitada! Essa anda calada, advertida, silenciada em nome da civilidade processual.

Vivemos, afinal, num tempo em que a mentira goza de presunção de veracidade, e quem ousa apontá-la é que se torna réu do sistema.

Pois que me acusem, então. Mas não me venham pedir silêncio quando a verdade é esfaqueada diante dos meus olhos.

Porque, se há algo mais grave do que mentir em juízo, é a complacência de quem assiste – e consente.

Foi então que Cícero entrou em cena, tomou a palavra ou, quem sabe, assumiu a cadeira com voz tonitruante – e bradou, como há dois mil anos:

– Ó tempos, ó costumes!

            Luiz Gonzaga Fenelon Negrinho é advogado e cronista. (luizgfnegrinho@gmail.com)